Saturday, 7 December 2024

A molecada do bairro

 

1979. A molecada soltava pipa na esquina da Imaculada Conceição com a Cristovão Colombo em frente ao bar do Seu João. O ceguinho que vendia sardinha fazia seu anúncio acompanhado da sua esposa fiel e escudeira. A Cidinha de uma perna só, subia a Cristovão Colombo agarrada à sua muleta falando palavrão e xingando à todos, geralmente alcoolizada, cheirando à cachaça. O Seu Zé da Carne batia de casa em casa vendendo miúdos em sua carroça, geralmente o fígado do boi ou as tripas das vacas que o pessoal chama literalmente de "dobradinha", ele mostrava com elegância sua balança tipo gancho que usava para pesar os seus produtos, ele tinha bigode espesso e cabelo alinhado, mas era um senhor elegante de fala mansa e calma.

A molecada fazia alvoroço com a dança das pipas. O Nenão, o Serginho e o Nico sempre faziam as melhores pipas, geralmente as maiores, mais coloridas e de rabos mais compridos. Todos os meninos do bairro queriam fazer pipas iguais a eles, mas poucos tinham talento para isso, portanto, restava comprar as  que eles faziam.

O horário de mais movimento da esquina era perto das onze da manhã, o sol de Araraquara estalando na cara e um calor danado, restava apenas pedir água no bar do Seu João, os que tinham mais recursos, tomavam aquele guaraná Ciomino gelado, geralmente dividiam com o copo americano ensebado e sujo, ele rodava nas mãos da molecada.

A Maria, vizinha da esquina, nesse horário passava água na calçada e a molecada aproveitava para jogar uma água no lombo para espantar o calor, afinal, ninguém era de ferro e era necessário se refrescar. De vez em quando, o senhor Paulo subia a Cristovão com seu isopor de sorvete, a sua gaita denunciava de forma fácil a sua chegada, a molecada gostava do sorvete de groselha e logo formava uma roda em torno de dele à procura do mais gostoso. 

Os irmãos Barão vendiam biju, vez ou outra eles apareciam na esquina com o latão de alumínio batendo a matraca e falavam: "olha o biju", anunciavam a plenos pulmões para todo o bairro ouvir. 

Viver ali era uma festa. Tinha um pessoal que morava na quadra acima, mais próximo da rua onze, eles gostavam de jogar futebol na rua - tinham até uns golzinhos feitos de madeira e redinha, era caprichado o negócio. As peleias geralmente aconteciam na parte da tarde, perto das quatro. O Mirão, o Jacaré, o Paulinho, o Betinho e mais alguns eram os reis do pedaço, eles escalavam o time e eram os donos da bola. O Tilim era o mais chato e quando aparecia a molecada se esquivava, ninguém queria escalar ele em seu time, geralmente ficava na reserva e de tanto demorar para entrar no jogo, pega as suas coisas e saia de fininho.

O seu Nestor português andava com o seu cigarro de palha fedorento nas mãos, usando seu chapéu de aba larga, o seu bigodinho "código de barra" engraçado era sensacional, ele falava meio enrolado e sempre apostava no jogo de bicho e logo cedo a molecada perguntava: e aí, Nestor, que bicho vai dar hoje? Capivara?. e ele respondia prontamente:

- Capivara é a sua mãe, filho da puta! Pois não existe capivara no jogo de bicho e a molecada se partia de rir na esquina.


Wednesday, 27 November 2024

Wilson Carrasco: força e talento nos gramados brasileiros

 

Cabeça erguida, passe certeiro e o desfile em campo, era assim o futebol de Wilson Carrasco, o “carrasco” dos gramados. Foi jogador polivante, com grande força física, conseguia aliar marcação com o jogar futebol.

O toque refinado na bola era a sua característica mais marcante. Tinha muita habilidade em bater faltas de média e longa distância, tantos foram os seus gols de bola parada.

Menino criado na cidade de Américo Brasiliense, despontou tarde para o futebol quando se propôs a disputar o futebol amador de Araraquara e região.

Foi jogando nas fazendas que o seu talento tardio foi descoberto. Carrasco foi dos campos de várzea direto para o gramado do Estádio da Fonte Luminosa, vestir as cores grená e branco da Associação Ferroviária de Esportes.

Depois de se destacar no Campeonato Paulista, foi contratado pela Portuguesa de Desportos, sua carreira ganharia destaque no gramado do Canindé, onde encontrou o parceiro, “Príncipe Eneas”, jogador de pernas longas, de muita força e técnica, que jogava um futebol refinado, fez grande parceria ganhando experiência e fama.

Especulado em grandes times do futebol brasileiro, foi jogar no Santa Cruz do Recife, onde encontrou outros grandes jogadores e fez boas parcerias com:  Pio, Givanildo, o centroavante Nunes e muitos outros.

Tempos depois, voltou ao Recife para jogar no rival do Santa Cruz, o Sport Recife, foram anos de bom futebol e títulos, estava coroada a carreira de Wilson Carrasco, camisa dez clássico, que carregava e batia na bola como os grandes magos do futebol brasileiro o fizeram.

Wilson Carrasco, “rodou” por muitos times do Brasil desfilando seu futebol fino e elegante até se aposentar dos gramados e ir se sentar no banco de reservas como treinador para ensinar e orientar os novos talentos.

 

 

Wednesday, 20 November 2024

Carta de Araraquara ao sol


O sol em Araraquara não "brinca", ele queima mesmo. Radiante e quente o sol se impõe sobre as árvores abundantes da cidade e não há sombra que resista, todos os lugares são quentes.

Araraquara é inimiga da chuva pois tem a certeza que é a Morada do Sol. O sol é permanente, imponente, a chuva é sazonal e o frio nunca tem vez e quase desaparece no decorrer do ano.

Araraquara tem uma estação definida, o verão, o restante é escassez, só o outono consegue mostrar um pouco a sua cara, tendo em vista que é a estação das folhas secas e as árvores costumam a ficar mais "peladas".

O olhar de longe sobre o asfalto reflete uma visão turva e embaçada tal a disposição do sol em se impor. Se o calor é dantesco, Araraquara é um protótipo do inferno, pois tudo queima, literalmente.

O refugio do sol pode estar nas piscinas, mesmo assim é relativo, pois a agua é quente e o mormaço é voraz. Haja calor!

O ar condicionado só funciona em Araraquara na temperatura mínima e olhe lá, usá-lo não é saudável economicamente, a conta chega cara no final do mês. O ventilador é uma opção relativa, se o ar está quente, vai permanecer - é a lei.

Araraquara é a morada do sol, o calor diz tudo!


Friday, 1 November 2024

O hall da U.T.I. e a esperança relativa

No hall da Unidade de Terapia Intensiva - U.T.I. todos são iguais em desgraça, em maior ou menor escala, todos se igualam. A esperança relativa é sempre a mãe de todas as incertezas.

O sorriso no hall  sempre é contido - ele não cabe dentro de si mesmo e muitas vezes vem mascarado de nervosismo e tensão que só o café é capaz de "acalmar".

Os olhos vermelhos e a cabeça baixa é uma constância daqueles que esperam o horário de visita no hall, comportamento típico de aflição, pânico e esperança quase perdida, os dias se fazem assim.

Não existe calor no hall, os dias são frios, seja porque o ar condicionado sempre está na pressão ou mesmo porque é um lugar capaz de transformar um abraço num gesto menos caloroso e abrasivo, num momento de desespero e afago.

O olhar sempre está perdido no tempo e no espaço, ele geralmente é cansado e longo, as pálpebras  estão baixas e inchadas, vítimas contumazes da ausência do sono e da noite perturbada.

As noites no hall são longas e as poltronas são curtas - elas são incompatíveis entre si. Dormir todo torto nas cadeiras para muitos não se trata da melhor opção, mas da necessidade de ficar mais próximo das vidas incertas e amadas que possuem.

A luz mortiça e amarela que alumia o hall o torna misterioso e infinito, ela é incapaz de iluminar as mini certezas que cada ser carrega dentro de si.

O hall é um lugar para saber amar e ficar esperando,  um lugar onde a vida e a morte são dois lados da mesma moeda.

Wednesday, 30 October 2024

O eu Hospital


As noites no hospital não são fáceis. Os aparelhos apitam a todo instante, as trocas de remédios e as intercorrências fazem com que elas sejam longas e com intervalos pequenos entre um sono e outro - as radiografias de pulmão as quatro da manhã, realmente deixam a gente sem fôlego até mesmo para acordar e sair do box, tal a "delicadeza" no fino trato.

Pela manhã, a troca de turno dos técnicos de enfermagem e dos enfermeiros é de fazer inveja às maritacas que pairam sobre as árvores no final das tardes, é um fala fala sem fim, causando irritação profunda, a ponto de vez ou outra me fazer pedir a um deles uma pequena dose de "precedex" para diminuir o fluxo sanguíneo e impedir a minha capacidade de mandar todos eles ficarem quietos.

Os médicos chegam logo pela manhã. Alguns ao nascer do sol e praticamente pegam a gente acordando, com o pensamento disforme e abstrato, com o cabelo desgrenhado e bocejando, tornando difícil o entendimento do que foi dito, tendo em vista o alto grau das expressões usadas cheias de abreviaturas e o "mediquês" fluente.

No hospital, tomar banho para quem fica como acompanhante na UTI é uma missão - é preciso marcar hora - se perder o horário, já era, só no dia seguinte. O engraçado é que existem funcionários cuja missão é exclusivamente acompanhar o "acompanhante" ao banho - mais estranho ainda é quando a funcionária chega no box e diz o seguinte: 

_ E aí, vamos tomar um banho? Para quem ouve isso e não entende o contexto, acha que existe alguma coisa fora da ordem!

Tomar café da manhã no hospital é uma lástima, pois as opções não são saudáveis para quem tem falta de grana, tudo é muito caro e enjoativo, sempre tem as mesmas coisas para comer, o que os tornam monótonos e nada convidativos com o passar do tempo.

Com o tempo, a gente vai se tornando figura fácil no hospital e passa a conhecer todos os atendentes das portarias, alguns até me chamam pela abreviatura, tal a intimidade que se cria, a ponto do garçom me ver e me perguntar:

_ E aí? O de sempre? 

O pessoal da portaria todas as manhãs me indagam:

_ E aí? qual a hora do banho? Se tornar morador de hospital é isso aí e mesmo que esteja chateado e cabisbaixo, a simpatia precisa imperar, afinal, a gente precisa dos funcionários  no decorrer do tempo e estabelecer relações saudáveis é fundamental para que se possa ter "facilidades" durante a trajetória "hospitaleira".






Douglas Onça: o menino da Vila Xavier



 

A carreira no futebol de Douglas Onça, o menino da Vila Xavier não seria possível sem o incentivo de seu pai: Oswaldo Lima Onça, ele o incentivava a pular o muro de casa para jogar futebol no campo da Atlética.   

Quando montaram o time de dente de leite da Atlética o chamaram para jogar e assim, ele disputou o primeiro campeonato e logo no primeiro jogo, começou no banco, entrou no segundo tempo e fez um golaço de peixinho, começava ali, a trajetória talentosa nos gramados.

Depois do primeiro campeonato, Douglas Onça jogou no time do Atlas, cujo treinador era o seu Armando Clemente e com dezesseis anos foi para o Palmeirinha da Vila Xavier, onde encontrou o seu Sebastiãozinho que era o treinador e diretor do time de futebol.

Posteriormente, seu Sebastiãozinho foi convidado para ser diretor da Associação Ferroviária de Esportes e na sequência levou Douglas Onça para compor o time. Quando chegou na Ferroviária, Douglas encontrou Olivério Bazani Filho, cujos ensinamentos passados o fizeram lapidar seu futebol de muita técnica e habilidade.

Douglas Onça estudava Agrimensura no Colégio Logatti e ficou na Ferroviária até estourar a idade para jogar nos juniores, depois disso, foi efetivado no time profissional da Ferroviária. O começo da vida profissional como jogador não foi fácil, Douglas jogava dez, quinze minutos por jogo ou muitas vezes, nem entrava em campo. Sua primeira partida como profissional foi contra a Francana na Fonte Luminosa no ano de 1979, num jogo que a Ferroviária ganhou por 1 x 0. No jogo seguinte na Fonte Luminosa, fez dois gols contra o Velo Clube de Rio Claro e em Campinas contra a Ponte Preta fez o gol da vitória por 1 x 0 e foi se firmando como time titular da equipe sob o olhar atento e carinhoso do treinador Sergio Clerice.

A partir de 1982, se firmou como titular da equipe, disputando um bom Campeonato Paulista, conseguindo vaga para a disputa da Taça de Ouro de 1983, sob a batuta de Sebastião Lapola e Roberto Brida. Na disputa da Taça de Ouro, Douglas Onça brilhou junto com Vica, Abelha, Claudinho Macalé e companhia onde a Ferroviária se destacou, fazendo uma campanha maravilhosa. O ponto mais alto da carreira de Douglas Onça foi num jogo da Taça de Ouro contra o Grêmio no Estádio Olímpico, onde fez um gol sensacional, numa vitória épica da Ferroviária sobre o time até então, Campeão Mundial.

            Douglas Onça ficou na Ferroviária até o ano de 1984, quando foi emprestado ao Coritiba, ficou pouco tempo, depois voltou para a Ferroviária. Em 1985, foi emprestado ao Sport Recife, depois voltou para a Ferroviária novamente, posteriormente foi emprestado ao Avai de Santa Catarina e ao Atletico Goianiense e encerrou a carreira no Marcílio Dias de Santa Catarina.

 


Monday, 14 October 2024

Sábado, cerveja e título do Coxa

 


Julho de 1999. O Coritiba fazia o jogo da final do Campeonato Paranaense de Futebol contra o Paraná Clube no Estádio do Pinheirão em Curitiba. – Fazia muito tempo que o time Coxa não ganhava um campeonato paranaense e a expectativa era imensa.

No primeiro jogo da final, o Coritiba ganhou por 1 x 0 no Estádio Couto Pereira e jogava a segunda partida pelo empate na casa do adversário. – O Pinheirão é um estádio enorme, a arquibancada fica longe do gramado, a pista de atletismo em volta ao campo deixa a visão longínqua, para assistir bem ao jogo é difícil, e naquele dia fazia muito frio em Curitiba e a névoa mesmo a tarde tornava assistir à partida um desafio.

O ônibus saiu do Campina do Siqueira em direção ao bairro do Tarumã. A gente dizia que o Tarumã era longe demais, do outro lado da cidade. Ao chegarmos ao estádio, a fila estava imensa, os torcedores do Coritiba tomaram as avenidas, a longa fila de carro se impunha e o barulho das buzinas ensurdeciam a vizinhança, tal era a expectativa pelo título.

Era impossível assistir à partida sem os acessórios: toca, luva e camisa de manga comprida tal o frio que assolava a tarde de sábado. A cerveja podia ser tomada na temperatura ambiente, já estava gelada o suficiente.

As cores branco, azul, vermelho e verde coloriam o estádio, as torcidas dividiam meio a meio a arquibancada do Pinheirão e faziam um bonito espetáculo. - O time do Paraná era muito técnico e bom. Lucio Flavio dava o toque refinado no meio-campo, desfilava seu futebol com garbo e elegância, jogava de cabeça erguida e um mestre em colocar a bola onde queria. Washington era certeiro, seus chutes dificilmente erravam o gol, nos lances de cabeça era um mestre e a referência que todo lateral gostaria de ter, se o cruzamento fosse certo, era gol. Ilan, um centroavante rápido e fazia muitos gols, depois, fez muito sucesso no Lyon da França, onde jogou com Juninho Pernambucano. Cleber Arado era um bom camisa dez, jogador técnico e que fazia muitos gols, o jogo prometia, o que tornava a final emocionante.

Com quinze minutos de jogo, o placar já estava dois a zero para o Paraná. Washington Coração Valente estava jogando demais e só dava o Paraná no ataque. – Antes de acabar o primeiro tempo, o Coritiba descontou numa cobrança de falta do falecido Cleber Arado, camisa dez dos bons, jogador muito técnico e finalizador – O segundo tempo começou com o Paraná atacando, mas no final do jogo, uma falta cobrada pelo veterano Darcy, ex Santos, Palmeiras e outros clubes do futebol brasileiro empatou a partida.

A torcida do Coritiba foi à loucura, as arquibancadas do Pinheirão ficaram pequenas para tanta festa, as faixas verde e branco desciam das arquibancadas, os sinalizadores foram acesos e o foguetório imenso – Ao término da partida, a torcida invadiu o campo, levaram o técnico Abelão nos ombros, alguns “levavam” as redes dos gols, outros atravessaram o campo ajoelhados tal era a importância do título.

Após o jogo, o título foi comemorado com muita cerveja e pagode no Bar Parada Obrigatória no bairro do Centro Cívico.

Saturday, 5 October 2024

O box 19



No box 19 tem vida, lá, tem máquinas também. Máquinas de todos os tipos e gostos a fim de salvar vidas e deixar outras aflitas, mas enfim, esse é o box 19. Lá tem esperança, tem Deus de todas as religiões, tem orações e preces, tem fé e divindade.

No box 19 tem sorrisos também, pode parecer uma contradição, mas o sorriso faz a vida e desperta a esperança, muitas vezes é onde se pode ver a presença divina, mas tem lágrimas também, onde se expressa a dor, o vazio da ausência e a incerteza do futuro. A vida e a morte estão lado a lado e são concorrentes.

O sangue corre para todos os lados no box 19, sai do humano e vai para a máquina, mas também faz o caminho inverso. O sangue esquenta e esfria de acordo com a necessidade, o frio e o quente que se sente, filtrá-lo é essencial para a continuidade da vida, creio que pode ser chamada de máquina da vida para aqueles cujo sangue se torna um problema devido às impurezas que carrega - bendita seja a máquina.

O suporte suporta as necessidades: aminoácidos, antibióticos, soros, enfim, medicamentos de todos os tipos e leva consigo leveza às dores do mundo. Os medicamentos correm por uma serpentina e entram pela via sanguínea, o seu fluxo é direto e certeiro - eles se misturam ao sangue, corrigindo percursos e aliviando aflições.

Não existe silêncio no box 19, todas as máquinas se manifestam, cada uma em seu tempo e razão, cada uma carrega em si, números importantes. Descobri depois de longa data que os números refletem a saúde que temos - posso dizer que ter saúde é uma questão numérica, e os números traduzem os nossos hábitos, costumes e jeito de ser.

As noites no box 19 são longas, um entre e sai de gente o tempo todo. Coloca medicamento, tira medicamento. A cadeira para dormir não é tão ruim quanto se pensa, ela tem suas limitações, mas o que irrita mesmo é a luz acesa do corredor, ela é capaz de causar um transtorno mental, tal a sua luminosidade intensa e  impertinência – eu olho para ela, ela olha para mim e parece que me solta um sorriso sarcástico e filho da mãe, dizendo:

_ Vou te ferrar essa noite!! Kkkkkk.

E como dizia minha tia:

_ Eu xingo! Mas nada posso fazer, a não ser trocar o lado de dormir e ter a paciência para que o sono chegue depressa. O ar-condicionado costuma ficar sem controle. O frio toma conta do quarto. O cobertor ralo e de tom amarelo do Hospital não dá conta, outros são necessários, além de ter que dormir de calça, camiseta e meias nos pés, um desconforto geral. O “sono” termina quando o Doutor entra para dar notícias que nem sempre são boas, mas são esperadas como nunca e assim, o dia se faz presente.


Sunday, 22 September 2024

Caca

 


As noites que passamos durante a pandemia foram as melhores, você pintava quadros enquanto eu dormia em frente à televisão, as vezes eu assistia um filme de Natal que passava no canal Studio. Entre uma tinta e outra, você me mostrava ansioso o quadro em esboço, geralmente não estava ruim, mas as vezes a perspectiva não estava muito boa, era necessário fazer alguns reparos.

Não me esqueço das vezes em que você pegava os seus quadros e fazia uma pequena exposição na sala, em frente à televisão, todo orgulhoso, tentando achar qual deles era o melhor. Eu dava meus pitacos, achava que assim, seria importante, afinal, aquilo tudo era significativo e fazia sentido.

Quando passava das dez da noite, você fazia um lanchinho com presunto e queijo para a gente comer. Sempre dava uma fominha especial. Você colocava no "quentinho" para fazer um lanche mais saboroso, tudo era muito gostoso.

Quando o mês de maio de dois mil e vinte chegou, a vida mudou bastante. Logo no começo do mês, a Coty chegou. Tudo tinha que ser infantil, afinal, a criança chegou e a alegria veio junto, embora alegria fosse um sentimento que não faltasse, por mais problemas que houvesse, a gente sempre carregava com leveza e sapiência.

A Coty dormia cedo, então, dava tempo de fazer a pintura de todo dia, enquanto a gente ficava trancado em casa. Você colocava a Coty na cama e depois ia arrumar o "circo" para a pintura, pegava as mesas, o estojo de pintura, colocava próxima ao sofá e a gente ia conversando a paisagem da vez, enquanto o cheiro das tintas recendia a nossa casa.



Monday, 16 September 2024

Silvio Santos, o Domingo no Parque e a prática do esporte



 

Acordar aos domingos de manhã e ligar a televisão para assistir Silvio Santos e o Domingo no Parque foi diversão para muitas gerações. Os gestos sutis de Silvio Santos aliados à sua voz engraçada e alta divertiam não só a criançada, mas também os adultos e os idosos.

O Domingo no Parque foi um programa organizado pelo apresentador tendo em vista o público infantil e acontecia todos os domingos pela manhã. A criançada ficava postada em frente à teve para assistir os desafios entre as equipes.

Geralmente, os duelos aconteciam entre escolas, as vezes entre a molecada vestida com camisas de times de futebol rivais, o ponto alto do programa era a conquista do maior número de pontos dentre as várias competições, a equipe que pontuasse mais, era a campeã.

As competições envolviam geralmente a prática de diferentes esportes, seja o futebol, o vôlei ou o basquete, o bastante para divertir a criançada, entre gritos, serpentinas, vaias e aplausos, mas principalmente era a diversão com a utilização do esporte como pano de fundo.

Silvio Santos sempre foi o rei do entretenimento. Suas mãos transformaram em ouro um canal de teve por que conseguia como ninguém transformar em “música” o comportamento social do brasileiro, tal a sua aceitação pelo público em geral. A sua atuação à frente dos programas era sensacional, tal a vocação para fazer sempre a coisa certa, da maneira certa e na hora certa quando o assunto era divertir o próximo.

Utilizar o esporte como diversão para as crianças através do programa Domingo no Parque foi a expressão mais forte do entretenimento proposto por Silvio Santos, na medida em que ajudou a construir caráter e a determinar os limites e expansões da cidadania por muitas gerações.

Silvio Santos “foi” aí...laia, laia, laia!!

Monday, 9 September 2024

Carta de São Paulo aos ansiosos



Da janela lateral vejo o mundo vertical paulistano. O concreto e a sombra aparecem de forma imponente deixando sobre a penumbra vidas apressadas. Quando se anda em São Paulo a impressão é que o mundo terminará em concreto, o abstrato fica por conta dos bares que celebram vidas hedonistas e sem muito sentido.

Os carros na cidade de São Paulo me parecem que já não passeiam mais, apenas trabalham, assim como as motos sempre à espera da próxima entrega. O futuro em São Paulo não existe. A vida é o presente.

As marquises e viadutos da cidade sustentam vidas estraçalhadas pelo tempo entre cobertores, travesseiros, papelões e plásticos pretos. São Paulo é um ir e vir sem conta, sem dar conta das pessoas que a fazem imponente e tenebrosa ao mesmo tempo.

Os grafites denunciam a tudo e todos e em São Paulo me parece que não tem ninguém certo. Na ansiedade, todo mundo está errado, a calma sofre calada e a confusão é iminente.

O ar que se respira não aspira a nada em São Paulo. O rio Tiete está quase mostrando o monstro do Lago Ness 2.0 tal a sujeira que o assola e o desola.




Tuesday, 3 September 2024

O V.A.R, a arbitragem e o “panis at circus” futebol

 




Falar que é contra ou a favor do V.A.R no Brasil é muito relativo, caro leitor, pois quando seu time é “ajudado”, está tudo certo e quando seu time é “prejudicado”, está tudo errado, tem que rever isso e aquilo, não pode ser, essa tecnologia veio para destruir o futebol e assim, os argumentos são disparados pelas redes sociais, uma mescla de indignação e felicidade tomam conta do ambiente interneteiro.

Pois bem, essa crônica não está relacionada com aquilo que é certo ou errado dentro do uso da tecnologia, mas no sentido de indagar alguns pontos que não são tratados como devem pela mídia em geral, nos debates mais sérios sobre o tema, mas que sobretudo precisam ser ressaltados num ambiente onde supostamente o profissionalismo tem tomado conta e um mundo de apostas dos mais variados tipos de jogos se faz presente sem uma “seguridade” por parte dos apostadores.

Em primeiro lugar, queria ressaltar a necessidade da profissionalização da arbitragem. Hoje, todos os jogadores são profissionais e são cobrados como tais, os treinadores também em sua maioria são profissionais. Os únicos não profissionais dentro das quatro linhas são os membros da arbitragem. O sistema de arbitragem de futebol no Brasil deveria ser profissional.

Os árbitros e os assistentes não vivem de futebol, eles são amadores, possuem outras profissões, portanto, não podem ser cobrados como tais, embora as torcidas de futebol no geral e a mídia não querem saber desse grande detalhe, mas ele faz toda a diferença quando se está em jogo a qualidade e a lisura dos campeonatos de futebol, pois os resultados das partidas passam pelas suas atuações.

Outro ator que entrou no sistema futebol é o torcedor apostador, aquele que pega seu “rico” dinheirinho e vai apostar em seu time de coração. O ambiente do futebol não o favorece, tendo em vista que aqueles que estão na arbitragem não possuem o profissionalismo devido e muitas vezes se deixa levar pelo favorecimento de um time ou outro, pois seu time de coração jamais pode ser prejudicado e ataca a lisura do processo e as regras do futebol me parecem ser sempre relativas, se é o time A ou B, são favorecidos, outros não, o que de certa forma ataca a lisura do campeonato e ataca os direitos dos apostadores. Os apostadores merecem uma arbitragem de futebol profissional e racional, pois o que está em jogo é o seu dinheiro.

A relatividade sempre fez parte do futebol brasileiro e parece que aplicar as regras de forma clara, objetiva e racional não me parece ser a missão do futebol brasileiro, pois em geral, os torcedores gostam de viver na polêmica, seja para vender notícias ou para ganhar likes e engajamento em redes sociais enquanto o futebol brasileiro continua no pão e circo e vendendo um mundo de ilusão aos novos apostadores do futebol.

Friday, 16 August 2024

O torcedor e as virtudes às avessas

 


A paciência nunca foi uma virtude do torcedor de futebol. Isso é imperativo quando se olha os campos de futebol de forma geral, seja da forma presencial ou mesmo através das transmissões: roedores de unha, provocações aos adversários, cantos de guerra e tudo mais.

A inquietação e a ansiedade é marca contínua do público, seja o torcedor adolescente ou mais velho, seja o time da primeira ou da última divisão, não interessa, o gol sempre será iminente e não interessa a eles que do outro lado, existe um oponente a altura em campo.

Se o adversário é melhor ou não, se tem melhores jogadores ou não, caro leitor, nada interessa. O time dele tem que ganhar a todo custo e forma. O torcedor de futebol já nasce ansioso e preguiçoso à derrota. O torcedor só reconhece a vitória como resultado, como se só tivesse essa possibilidade, o empate e a derrota fazem parte de um universo paralelo e só existem na cabeça dos outros.

Nas derrotas, a culpa sempre é do próprio time, nunca mérito dos adversários. O passe magistral que o oponente deu para o gol, em última análise, é culpa do meio campista, dos zagueiros, dos volantes, menos da capacidade “artística” do adversário. O torcedor de futebol é a personificação da arrogância e do narcisismo como fala Nelson Rodrigues. A humildade não é uma virtude cultuada pelo torcedor de futebol, claro que pode existir exceções. O seu time é o melhor e ponto e mesmo que não seja, nessa questão, ninguém discute.

Todo torcedor conhece como nunca o futebol. Tem aqueles que conseguem acertar a escalação, outros que conhecem como nunca grandes esquemas táticos, tem aqueles que sabem como o jogador deve “bater” na bola, tem até aqueles que gostam de ensinar como se faz, sem nunca terem feito, esse é o mundo do futebol, recheado de fantasias e frustrações.

A paixão e a pieguice andam juntas quando o assunto é o torcedor de futebol. Qual o limite entre elas ninguém sabe ao certo. A linha entre a razão e a emoção é muito tênue e muitas vezes invisível, por isso, ufanismo e violência dão as mãos na mesma proporção quando o assunto é futebol.

Há quem diga que o universo do torcedor é megalomaníaco e o mundo das arquibancadas é uma caixa de virtudes às avessas.

 

Tuesday, 30 July 2024

Os meninos, o campo do ACCO e o troleibus

 

 

Ele esperava ansioso o troleibus no ponto de ônibus. Chuteira Viola entre os dedos, mascando chicletes e andando de um lado para o outro na calçada. Era dia de jogo do campeonato infantil de futebol, que iria acontecer no estádio do ACCO, um campo de futebol que fica na Vila Xavier.

O caminho até lá é longo, a Vila Xavier fica do outro lado da cidade, ele precisava pegar o troleibus na Rua João Gurgel, entre as avenidas Cristóvão Colombo e São Geraldo, próximo aos secos e molhados que pertencia à Dona Malvina, e cruzar a cidade. O troleibus da linha Santana-Pinheirinho praticamente atravessava a cidade de ponta a ponta.

Ele torcia para vir o troleibus de número oito. Ele achava o ônibus mais confortável, embora fosse mais velho e lento. Os troleibus antigos tinham as cores azul e branco. Os bancos em couro de cor azul eram confortáveis e suavam as pernas durante o trajeto, ele achava aquilo engraçado. As janelas tinham travas, às vezes elas emperravam e teimavam em não abrir, era melhor passar calor do que insistir na abertura.

Andar de troleibus era uma aventura. Ainda nos dias de hoje, ele se lembra do motorista que possuía uma moita como cabelo, usava óculos e tinha um bigode preto e branco. O homem atrás daqueles óculos e do bigode ficou furioso porque, literalmente, os “chifres” do troleibus caíram e, a reação dele é indescritível nessa crônica, rendeu um ataque de nervos fenomenal e foi palavrão de toda ordem e calibre para todos os lados, pois para colocá-los no lugar era uma luta incessante e, as vezes, demorava muito tempo.

O ponto bom da “viagem” de troleibus até à Vila Xavier era encontrar a molecada durante o trajeto, às vezes subiam companheiros de time no ônibus, muitas vezes adversários conhecidos pelos seus talentos, mesmo assim, o papo rolava solto no troleibus, todos de chuteiras entre os dedos, vez ou outra alguém levava laranja para chupar durante o trajeto e todos chegavam juntos ao ACCO.

A molecada se reunia, todos ficavam conversando sob as sombras das árvores esperando o portão abrir e os treinadores chegarem, não importava o time de cada um, antes dos jogos, todos eram “amigos”. Os treinadores chegavam geralmente de bicicletas ao ACCO. Eles carregavam os uniformes em grandes sacos de arroz sobre o guidão das bicicletas.

De qualquer forma, ele não entendia ainda na tenra idade o que aquilo significava, como homens como aqueles, se sujeitavam a levar sacos de uniformes de time de futebol nas bicicletas para um monte de moleques que mal conheciam, sem quase nenhum vínculo afetivo e praticamente sem nenhum ganho financeiro. Tempos depois, passou a refletir a frase de Willian Shakespeare para responder a essas indagações: “existem mais coisas entre o céu e a terra do que a nossa vã consciência possa imaginar”.

Sunday, 14 July 2024

O bairro do Santana, o Guaraná “Mimosa” e a Copa do Mundo de 1982




1982. Ano de Copa do Mundo. A seleção canarinho estava voando. Sócrates, Zico, Falcão e companhia desfilavam talento mundo afora, jogando bonito e fazendo placares elásticos contra qualquer seleção adversária.

A torcida brasileira estava em polvorosa e empolgada. As ruas do bairro do Santana, próximas ao Colégio Narciso da Silva Cesar estavam pintadas em verde e amarelo e com bandeirinhas penduradas com as cores da seleção. A criançada feliz, gritava os nomes dos jogadores ao embalo do samba de Junior e companhia: “Voa canarinho, voa, mostra na Espanha o que eu já sei”, era o hit da Copa do Mundo que aproximava a seleção brasileira da população.

Logo no primeiro jogo contra a seleção russa de Dasaev e Ball, um “frango” de Valdir Peres assustaria a torcida brasileira até o lindo gol de Sócrates de fora da área, num chute indefensável para o goleiro russo. A alegria contagiou a molecada que saiu para as ruas com confetes e serpentinas, um verdadeiro carnaval se fez presente, mas o ápice viria com o golaço de Eder num petardo de fora da área decretando a vitória canarinho.

Depois desse jogo, a molecada foi para a rua cantar o samba da seleção e todo mundo estava numa alegria contagiante, acreditando no título Mundial, afinal de contas, a seleção brasileira havia apresentado um lindo futebol e ainda tinha vencido uma forte seleção.

Após o jogo contra os russos, viriam mais duas vitórias convincentes contra as seleções da Escócia e da Nova Zelândia, foram duas goleadas acachapantes e um futebol vistoso, bonito e alegre. Zico comandava o meio campo da seleção junto com Sócrates e Eder que era o grande jogador do ataque canarinho.

Para o brasileiro de maneira geral, o futebol apresentado até aquele momento pela seleção era motivo de orgulho. Toda criança era um Zico ou um Sócrates em potencial, onde havia crianças e adolescentes reunidos com uma pelota em mãos, esses nomes eram os mais falados, assim como o samba da seleção que se ouvia a todo momento nas rádios locais.

Com a classificação para a próxima fase, a seleção brasileira iria enfrentar logo de cara a Argentina que havia sido campeã em 1978. Era um confronto muito duro, pois do lado argentino tinha Ardilles, Ramon Dias, Tarantini, Passarella, Maradona e outros craques que tinham fama mundial tanto pelo talento na posse da bola como pelas faltas violentas que faziam. A seleção brasileira deu um show de bola nos argentinos que ainda tiveram um jogador expulso, final 3 x 1 para a seleção brasileira.

O país entrou em êxtase com a vitória sobre a seleção argentina. Os jornais apresentavam os jogadores sendo entrevistados. Junior aparecia no programa de domingo a noite com o clip do samba, Tele Santana falava aos microfones dos principais noticiários, enquanto o personagem Zé da Galera de Jô Soares cobrava do treinador brasileiro a presença de um ponta, já que a seleção jogava com apenas dois atacantes: Serginho e Eder.

A seleção brasileira foi para o jogo contra a Itália com a moral lá em cima. Havia feito os resultados contra todos os seus adversários jogando o fino da bola, a maestria de Zico e Sócrates encantava o mundo, a Itália chegava de certa forma como zebra, pois se classificou de maneira difícil na primeira parte da Copa, uma seleção com características mais defensivas e em tese um futebol mais feio, mas com muita tradição no mundo da bola.

No dia do jogo, a molecada se reuniu na casa do Betinho, lá no Santana, tinha uns quinze moleques assistindo a partida, a Dona Regina havia feito pipoca para todo mundo e o Guaraná Mimosa, refrigerante famoso de Araraquara refrescava a cabeça da criançada. A euforia era a palavra-chave que norteava aquele momento mágico do futebol brasileiro.

 O clima era de festa até o “passe maldito de Toninho Cerezo que nunca chegou” e a finalização certeira do canastrão Paolo Rossi, era o terceiro gol dele na partida e daí em diante, o choro se fez presente, a frustração tomou conta do ambiente e o dia se fez noite e tudo acabou.

 


Tuesday, 25 June 2024

Futebol de botão, Casa Tarallo e Kibelanche

 




Quando criança, ele acostumava acordar as seis da manhã para fazer o que mais gostava: jogar futebol de botão. Acordava no pé de pano para não acordar a rapaziada, abria a porta da sala devagarinho para que ninguém ouvisse, pegava seu “Estrelão”, separava os times e escolhia os preferidos, geralmente o Marília, o MAC e o Guarani de Campinas.

Os goleiros dos times, precisavam ser de caixas de fósforo, dizia que o que vinha nos jogos era muito pequeno e fácil de ser abatido e que quase todo lance era gol. A caixa de fósforo era grande, impedia vários gols e fazia defesas incríveis, por isso, muitas vezes ela era personalizada com o distintivo e as cores dos times, cada time tinha o seu goleiro “caixa” intransponível e forte.

Ele ficava jogando por horas a fio, não importava os compromissos do dia e nem da escola, o que interessava era estar bem-preparado para jogar o campeonato que a rapaziada do bairro fazia e que geralmente ocorria na casa do Betinho, lá era legal jogar, ele comentava, tinha um campo de futebol de botão pintado no cimento do corredor da casa e era o sucesso da molecada do bairro e o “pau comia” literalmente.

Ele gostava de ficar na expectativa na parte da tarde, geralmente sua tia que era aposentada e vivia fazendo crochet vira e mexe dizia que ia ao centro da cidade. Passear com a tia no centro da cidade, andar na rua dois era um luxo, ele podia comprar mais um de seus jogos de futebol de botão na Casa Tarallo, que ficava na esquina da Avenida São Paulo, tinha uma variedade enorme de times, ele gostava dos times que tinham as fotos dos jogadores, aquilo era o verdadeiro paraíso e aumentar sua coleção era sensacional.

Depois de sair da Casa Tarallo, o roteiro do passeio incluía a Kibelanche, uma casa que vende até hoje comida árabe, mas que na época era famosa pelos salgadinhos que fazia, geralmente as coxinhas e os kibes e que ficava na Rua São Bento. Ir à Kibelanche e comer os salgadinhos era uma verdadeira epopéia para o menino do bairro e um “luxo” a ser comemorado. Ele falava para os amigos do passeio durante semanas e mostrava a todo momento sua nova aquisição com todo orgulho possível.

Quando voltava para casa perfilava todos os times de futebol de botão que possuía, colocava cada um lado a lado e depois apresentava o novo esquadrão, escolhendo um time para rivalizar e entre uma tacada e outra narrava as jogadas falando o nome dos jogadores e as vozes dos locutores esportivos mais famosos.

 

 

Monday, 10 June 2024

Macarronada, Silvio Luiz, Lancelotti e o futebol italiano

 



Outubro de 1989. Os domingos de manhã começavam complicado para ele. As noites de sábado sempre eram difíceis, pois sempre chegava tarde da boate, elas eram regadas a cerveja barata e a vinho de garrafão, o que dava uma dor de cabeça danada e uma sede terrível, então, acordava em condições lastimáveis.

O que empolgava as manhãs de domingo era o cheiro do almoço que tomava conta da casa, geralmente o perfume do molho de tomate com leve toque de manjericão que fervia junto ao queijo da dona Maria Assunção, vizinha icônica do bairro, portuguesa de origem, que de vez em quando aparecia com um bigode espesso e viscoso de fazer inveja a Charles Bronson. A molecada comentava no bairro e zoava de forma respeitosa, já que o seu coração era gigantesco e sempre estava disposta a ajudar a rapaziada, o molho era caprichado para a macarronada, o frango assado com farofa tostava no forno intrépido e aquela cozinha toda recendia a almoço bom.

Ele passava discretamente pela cozinha com o copo de água na mão e ia para a sala ligar a TV no canal Bandeirantes, era a hora do futebol italiano que era transmitido aos domingos pela manhã, ele gostava de ver Maradona, Careca, Gullit, Van Basten e outros astros do futebol mundial desfilar os seus talentos sob a voz metálica e áspera de Silvio Luiz com os comentários “deliciosos” de Silvio Lancellotti, o chef, que nos momentos “vagos” do jogo trazia algumas receitas da culinária italiana, deixando a rapaziada com água na boca, já que a fome naquele momento contraía o estômago.

Geralmente, no intervalo da partida, sua mãe dava o pronto do almoço. Era a hora de fazer o prato gigantesco de macarrão e frango e ir comer em frente à tv, sempre com o ar de reprovação materno e a frase clássica “se derrubar na sala, vai limpar, tá bom? Aqui não tem empregada”, a cantilena era sempre a mesma, mas não se importava, afinal, as mães sempre têm razão, seja ela qual for.

O que importava mesmo era comer e se divertir com a narração de Silvio Luiz, sua voz ecoava pela sala através da Semp Toshiba de vinte polegadas. Seus bordões, já conhecidos e engraçados, tornavam os jogos, por pior que fossem, bons demais. Silvio, às vezes se perdia nas narrações, só aparecia mesmo na hora do gol, ficava falando de receitas com o Lancellotti, contava casos pitorescos, até piadas apareciam e, de repente, o clássico “...foi..foi...foi ele, o craque da camisa número”....era uma festa.

Entre uma garfada e outra, de repente o Silvio Luiz soltava:

- Você que está sentado confortavelmente na poltrona e comendo aquela macarronada com frango, saiba que agora também estamos morrendo de fome, não é mesmo, Lancellotti?

E ele, sem querer, dava aquela olhada suspeita no prato. Esse era o artifício de Silvio Luiz para dialogar com o telespectador, o mesmo usado por Machado de Assis quando queria colocar o leitor no contexto de suas histórias. Era sensacional, pois o chamava para uma relação muito pessoal e carismática, deixando sua contribuição inestimável para a imprensa esportiva brasileira.

 

 

 

 



Thursday, 23 May 2024

O centroavante, a bola, o goleiro e o gol: a saga

 

 

O jogo acabou empatado na decisão. O campeonato teria que ser decidido nas penalidades. O goleiro tremeu nas pernas, mas estava confiante. O centroavante ressabiado e tenso, mas estava de cabeça erguida e firme no propósito.

O centroavante correu para a batida, o goleiro deu um passo a frente, o juiz levantou o braço e soprou o apito anulando a cobrança. O centroavante teve a certeza de que o goleiro tinha feito aquilo para o desconcentrar e de certa forma, deixá-lo confuso e sem confiança. O goleiro olhou e sorriu, jogando a bola sobre ele, disse alguma coisa, ele não entendeu, o centroavante ficou sem ação, pegou a bola, abaixou a cabeça e enquanto arrumava a bola na marca da cal, o goleiro andou até ele e deu um leve chute na bola. O juiz deu cartão amarelo para o goleiro.

A torcida em polvorosa, vaiou. O goleiro retomou o seu espaço e batia com as mãos sobre a linha do gol apontando o canto em que o centroavante provavelmente bateria. O centroavante olhou nos olhos do goleiro, arrumou os meiões e ajustou o calção, bateu com os pés no chão, acertou a bola na marca da cal novamente e tomou distância para bater.

Quando o apitou do juiz soou, um torcedor veio correndo da arquibancada com uma bandeira do time, ele chegou em frente ao centroavante e se ajoelhou, lhe disse qualquer coisa no ouvido e lhe abraçou. O juiz levantou o braço suspendendo a cobrança. Os seguranças do estádio pularam sobre o torcedor e o imobilizaram, o centroavante correu até ao torcedor e lhe disse que estava confiante para a batida.

O estádio veio abaixo, eram vaias e xingamentos de todos os lados. O juiz cobrou o goleiro e o centroavante para que retomassem os seus postos. O goleiro voltou para debaixo das traves e na linha devida, o centroavante ajustou a bola novamente na marca da cal. O goleiro disse qualquer coisa para o juiz, o juiz correu até ele dizendo algo de forma ríspida e imponente, o goleiro deu uma risadinha e abaixou a cabeça, o centroavante colocou as mãos na cintura à espera da normalidade, arrumou novamente os meiões, passou as mãos na cabeça e olhou para a arquibancada.

O centroavante sentiu que aquele era o seu momento, não podia errar, agora era ele, a bola, o goleiro e o gol como dizia Osmar Santos nas narrações de jogos durante a sua infância no radinho de pilha do avô no começo dos anos 90, a voz metálica de Osmar buzinava em seu ouvido, muito mais que a explosão da torcida, passou a língua entre os lábios, a responsabilidade do gol era sua, a alegria ou a tristeza da torcida estavam em seus pés.

O goleiro sabe que as suas mãos são abençoadas, mas também pode contar com a sorte, o centroavante pode chutar a bola na trave ou mesmo para fora, para muitos torcedores a responsabilidade do goleiro na hora do pênalti é menor do que a do atacante, mesmo assim, o goleiro precisa ser abençoado e suas mãos santificadas, tem torcida que transformou goleiro em santo, mas daí até ser diabo, a linha é curta, bem curta, por isso, creio que o goleiro quando vem ao mundo, ele já vem com uma dádiva especial para o bem ou para o mal, seja ela qual for, a sua missão é antifutebol, pois tem que evitar a alegria máxima do esporte bretão que é o gol. O goleiro é a antítese do futebol, a frustração ou a alegria de milhões de pessoas passam por ele, por isso, seu papel é tão fundamental. Naquela hora, passou em sua mente os ídolos da infância e a voz marcante de Fiori Gigliotti narrando uma defesa de seu goleiro preferido na infância, de qualquer forma, pensou que as cortinas poderiam se abrir para ele.

O juiz soa o apito. O centroavante tomou a distância devida para a cobrança. O goleiro se balança entre as traves. O centroavante chuta, o goleiro resvala na bola, ela bate em uma trave, bate na outra trave, volta, pega nas costas do goleiro e entra mansamente no gol, a torcida explode em alegria. O goleiro, deitado, soca o chão, enquanto seus companheiros vão consolá-lo pela má sorte, pois ele chegou a tocar na bola, mas as traves, as traves fizeram a diferença e as cortinas se fecharam para ele naquele crepúsculo de domingo.

Thursday, 9 May 2024

A torcida que perdeu o time de futebol

 


Ele acostumava ir ao estádio de futebol com o seu pai, chegava cedo, se sentava no concreto da arquibancada e pegava o saco de amendoim com casca que a dona Adriana passava vendendo sob o sol escaldante, ele gostava de ouvir o som da casca do amendoim se abrindo e entre um e outro, dava um gole no refrigerante.

Ao longe, do outro lado do estádio, acostumava ver as torcidas organizadas chegando, alguns com faixas, outros com instrumentos musicais: o pandeiro, o tamborim, o bumbo, as faixas com os nomes das torcidas eram estendidas no alambrado e alegravam o ambiente, aos poucos, o estádio ia lotando, as pessoas iam chegando e a expectativa para o jogo só aumentava e tornava o clima especial.

Tempos depois, resolveu voltar ao estádio, já sem o pai, mas percebeu que o clima não era o mesmo para as partidas do time de futebol, a torcida não apareceu, o nome do time havia mudado a algum tempo, a diretoria mudou o nome do estádio, as torcidas organizadas sumiram, avistou de longe uma meia dúzia de pessoas falando “palavras de ordem”, e teve a impressão de que a “organizada” do time se resumia aquele amontoado, os instrumentos que dão voz ao samba, também estavam ausentes, ouviu dizer que eram proibidos em estádios de futebol e por um segundo pensou que não existe mais a harmonia entre a cadência do samba e o esporte bretão.

A Dona Adriana não apareceu para vender amendoim, disseram que agora, não era mais permitido vende-los sem ter licença e ela custa caro, a cerveja não podia ser consumida, de acordo com outros torcedores, ela causa confusão e briga entre as torcidas, o refrigerante e a pipoca ainda podem ser consumidos, mas o preço “está o olho da cara” de tão caro, o futebol ficou chato demais, reclamou com um torcedor ao lado.

Ficou triste. O estádio tinha poucas pessoas assistindo o jogo de futebol, em outrora, ele ficava lotado e não importava o adversário e nem a divisão, agora pode se ouvir o som do silêncio, até o toque da bola se ouve da arquibancada, os torcedores não ficam mais nos alambrados, uma prática rotineira da torcida que se perdeu no tempo e no espaço tendo em vista a “modernidade” que assolou o futebol.

Em conversa com outros torcedores descobriu que o time foi vendido para um empresário que mora na Terra do Nunca e que nunca pisou o solo da cidade. Durante a semana visitou o museu do time e percebeu que as taças conquistadas através da história estavam jogadas em um canto da sala, as faixas de campeão e flâmulas amontoadas em uma gaveta qualquer de uma estante velha e empoeirada, e assim, a história se fez passado e o passado já não existe mais, embora o time “ainda” exista, a torcida me parece que ficou no passado, o presente não lhe interessa e o que restou segundo as suas impressões foram as arquibancadas vazias e o som do silêncio e ficou com a percepção de que a torcida perdeu o time de futebol.

Thursday, 2 May 2024

A modernidade, o espaço e o tempo em Anthony Giddens

 


A modernidade, o espaço e o tempo em Anthony Giddens

Anthony Giddens é um sociólogo britânico. É considerado por muitos como o filósofo social mais importante da Inglaterra e uma figura de destaque no Labor Party, é um dos teóricos mais significativos que ajudou a construir a ideia da Terceira via. É professor da Universidade de Cambridge. 

Essa obra é dividida em seis capítulos e foi gestada durante a estadia de Giddens na Stanford University nos Estados Unidos durante as Leituras do Memorial Raymond Fred West no ano de 1988. 

Em As consequências da modernidade, Giddens escreve uma provocativa interpretação das transformações sociais ligadas à questão da modernidade, em sua visão, ainda não vivemos em mundo “pós-moderno”. 

A obra se inicia com Giddens conceituando modernidade, para quem “trata-se de um estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que se tornaram mundiais em sua influência”. 

Para Giddens como estava chegando no limiar do século XX era necessário as ciências sociais dar uma resposta para além da modernidade, uma vez que uma variedade de termos surgiram “sociedade de informação”, “sociedade de consumo” mas era necessário ir além, uma vez que o senso comum nos empurrava a ideia de uma mudança estrutural no conceito de modernidade, saindo de um sistema de manufatura e da produção de bens de consumo para um sistema cujo epicentro seria a informação. 

Giddens parte de um processo de descontinuidade do desenvolvimento social para organizar as suas ideias, quebrando um pouco o discurso sociológico onde ficam inventando termos para dar conta das transformações sociais em vigência. 

As transformações que ocorrem na modernidade são mais profundas que as sociedades precedentes, por isso, a necessidade de identificar as descontinuidades, para isso, Giddens aponta algumas características, são elas: o ritmo de mudança que a modernidade coloca em movimento; a outra é o escopo da mudança, onde as transformações ocorrem de forma virtual e a terceira é a natureza intrínseca das instituições modernas, ele quer dizer que o Estado-nação, o trabalho assalariado se modificam de forma constante e retilínea. 

A relação entre a modernidade, o espaço e o tempo é  visto por Giddens como um processo de descontinuidade, em sua visão o tempo da política e do mercado são distintos, as necessidades da política estão relacionadas a questão tempo distante e o do mercado o tempo da emergência. 

A relação entre o espaço e o tempo causa um processo de desencaixe na visão do autor. O desencaixe dos sistemas sociais pode ser definido como o deslocamento das relações sociais de contextos locais de interação para um contexto global. 

Nesse sentido, Giddens trabalha um outro conceito chamado confiança, que se desenvolve na esteira da relação espaço e tempo produzido pela relação de desencaixe. Por sua vez, Giddens questiona como construir uma relação de confiança nas relações virtuais?  

Outro conceito trabalhado por Giddens na obra diz respeito à reflexividade da vida social moderna que consiste no fato de que as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz da informação renovada sobre as suas próprias práticas, alterando de forma contumaz a o seu caráter. 

Existem para Giddens três fontes dominantes do dinamismo da modernidade, cada um vinculada às outras: a relação espaço e tempo; o movimento de mecanismos de desencaixe; a apropriação reflexiva do conhecimento. 

Os mecanismos de desencaixe para Giddens podem ser representados da seguinte forma: 

·   Fichas simbólicas e sistemas peritos envolvem confiança, enquanto distinta de crença baseada em conhecimento indutivo fraco; 

·  A confiança opera em ambientes de risco, nos quais podem ser obtidos níveis variáveis de segurança (proteção contra perigos); 

·   Poder diferencial quando alguns indivíduos ou grupos estão mais prontamente aptos a se apropriar de conhecimento especializado do que outros; 

·    O papel dos valores, os valores e o conhecimento empírico se vinculam através de uma rede de influências mútuas; 

·     O impacto das consequências não pretendidas, ou seja, o conhecimento sobre a vida social transcende as intenções daqueles que o aplicam para fim transformativos; 

·   A circulação do conhecimento social - O conhecimento aplicado às condições de reprodução do sistema altera intrinsecamente as circunstâncias às quais ele originariamente se referia. 


Referência


GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1991.