Thursday, 18 September 2025

A sauna e os outros "mentirosos"


A sauna é um espaço peculiar, onde a dinâmica social se manifesta de maneiras intrigantes. Ali, as interações entre os frequentadores revelam aspectos interessantes da natureza humana, onde a verdade e a mentira se entrelaçam em um ambiente de vapor e calor.

Na sauna, é comum que os homens compartilhem histórias de sucesso, muitas vezes exageradas. Seja no ramo imobiliário, nos esportes ou em viagens, cada um parece ter uma narrativa que realça suas conquistas. Talvez o calor e o ambiente relaxante baixem as inibições, permitindo que a imaginação floresça. Além disso, a sauna pode servir como um palco onde se constrói uma imagem idealizada de si mesmo. “Lugar onde quase toda nudez se faz castigada e toda mentira seja “bendita”, parafraseando Nelson Rodrigues.

Ao observar os frequentadores, nota-se que muitos homens, especialmente aqueles mais corpulentos, usam cuecas que pouco escondem. Este despojamento pode ser visto como uma metáfora para a vulnerabilidade humana, onde as aparências são deixadas de lado e a autenticidade, ou a falta dela, vem à tona.

Dentro da sauna, as hierarquias sociais se revelam de forma sutil. Sempre há aquele frequentador que assume a liderança, geralmente um “mais antigo” que conhece todos os rostos. Ele zomba, ri e convida os novatos a se juntarem à "zoeira". Este comportamento talvez seja uma forma de afirmar seu domínio no espaço, ou simplesmente um jeito de quebrar o gelo e estabelecer uma camaradagem entre todos.

Remetendo aos antigos banhos romanos, a sauna é um local onde os homens se permitem estar como vieram ao mundo, sem se importar com suas imperfeições. É um espaço de aceitação, onde a potência ou fraqueza não são julgadas, mas sim, fazem parte da experiência coletiva.

A sauna é um microcosmo que reflete as complexidades das relações humanas. É um lugar onde as verdades e mentiras se misturam, onde as lideranças se formam e as vulnerabilidades são expostas. Na sauna, somos lembrados de que, em essência, todos somos iguais, independente das condições financeiras, sociais e das histórias que se desenvolvem.

 

Sunday, 7 September 2025

“Andanças” no Estádio da Fonte Luminosa

 


Lembro-me vividamente da minha infância, quando as tardes de domingo eram reservadas para os jogos da Ferroviária no Estádio da Fonte Luminosa. Naqueles tempos, as arquibancadas eram de cimento, e ficar sentado ali, sob o sol escaldante de Araraquara, era um verdadeiro desafio. Mas, para mim, cada momento valia a pena.

O estádio, com suas grandes arquibancadas de concreto, tinha uma atmosfera única. O barulho da torcida, os cânticos apaixonados e o som dos apitos dos árbitros criavam um ambiente vibrante e cheio de energia. Mesmo sob o calor intenso, nada diminuía o entusiasmo dos torcedores que, como eu, estavam ali para apoiar a Ferroviária com todo o coração.

O alambrado de alumínio separava a torcida do campo de futebol. Entre eles, também havia os policiais militares com seus cães pastores alemães, que tomavam conta do universo da partida. Os torcedores mais afoitos se agarravam ao alambrado, xingando os juízes e os bandeirinhas, geralmente de barriga de fora e segurando um copo de cerveja.

Os repórteres tinham a missão de entrevistar os jogadores, entre fios e o sol quente de Araraquara. Com certeza, tratava-se de um desafio. Nos intervalos da partida, a trilha sonora do estádio incluía a música Andanças na voz de Bete Carvalho, uma música que marcaria a infância e que, toda vez que tocada, me faz lembrar das tardes festivas no estádio.

Comer amendoim com casca, sentado sob o sol quente e tomar refrigerante gelado era algo fundamental para um menino que adorava futebol. Essas pequenas tradições tornavam cada jogo uma experiência inesquecível, e cada vitória da Ferroviária era celebrada como um grande evento.

Voltar àquelas tardes de domingo no Estádio da Fonte Luminosa é como revisitar um tempo em que a paixão pelo futebol se misturava com o carinho pelas pequenas coisas que faziam a vida mais saborosa.

Monday, 1 September 2025

Luis Fernando Veríssimo: crônica de um gaúcho dos pampas

 


Luis Fernando Veríssimo foi um daqueles escritores cuja obra se entrelaça com a cultura e o espírito de sua terra natal, desenvolvendo de certa forma a literatura com características regionais.

Luiz Fernando Veríssimo era filho do renomado escritor Érico Veríssimo, que escreveu entre outras obras, o clássico “Olhai os lírios do campo”. Luiz Fernando Veríssimo era homem de tantos campos, vastos na imensidão da literatura.

Era o homem do riso, do escárnio, da piada concentrada e do deboche. Torcedor fanático do Internacional de Porto Alegre e para quem todo gol tinha a cor do colorado dos pampas.

Seu estilo literário foi marcado pela crítica social e pela capacidade inigualável de interpretar o cotidiano através de suas crônicas. Crônicas divertidas, de sarcasmo escrachado. Explorava como nunca o mundo do futebol e a sua paixão pelo Internacional, o fazia ter uma opinião perspicaz e satírica sobre o tema.

Falar de temas sérios de forma divertida, era uma das peculiaridades de Veríssimo. O humor era a sua marca registrada e que fazia o seu leitor se debruçar e refletir sobre a complexidade da vida moderna. Fosse na política, nas relações humanas, no futebol, em qualquer tema.

O Luiz Fernando era escritor de muitos Veríssimos. Verossímil em suas análises e honesto em seu sarcasmo literário e seu falecimento representa uma perda inestimável para a literatura brasileira.

Descanse em paz, Veríssimo e obrigado pelas palavras.

 

Sunday, 24 August 2025

O Lua de todos

 


Era um fim de tarde em Araraquara, e o sol começava a se despedir no horizonte, pintando o céu com tons de laranja e rosa. Na pensão do São Geraldo, um homem de andar peculiar preparava-se para mais uma caminhada pela cidade. Conhecido por todos como "Lua", ele era uma figura icônica, vestido sempre com suas roupas grenás, uma homenagem silenciosa à Ferroviária de Araraquara, seu time do coração.

Lua não era apenas um apelido, mas um reflexo da sua personalidade. Como a lua que ilumina a noite com suavidade, ele falava baixinho, quase como um sussurro que convidava à confidência. Sua presença era calmante, um alívio para os corações apressados que cruzavam seu caminho.

Algo curioso sobre Lua era o cartão vermelho que sempre trazia consigo. Não era um cartão de punição, mas sim de paz e de tiração de sarro. Sempre que alguém estava prestes a perder a calma, ele sacava seu cartão, com um sorriso gentil nos lábios, lembrando a todos da importância de manter a cabeça fria e o coração aberto.

Lua andava com certa dificuldade, mas isso nunca foi impedimento para as suas longas caminhadas pelas ruas de Araraquara. Conhecia cada esquina, cada rosto, e cada história. Sua presença era um elo que unia a comunidade com a Associação Ferroviária de Esportes.

Na pensão do São Geraldo, Lua era mais do que um inquilino; era uma presença constante e reconfortante. Ele estava sempre pronto para ouvir, para trocar palavras de sabedoria, ou simplesmente para compartilhar o silêncio. Seu quarto, decorado com lembranças da Ferroviária, era um refúgio de tranquilidade.

No estádio da Ferroviária, Lua era um personagem central. Não tanto pelas suas habilidades esportivas, mas pelo amor incondicional que dedicava ao time. Para Lua, cada jogo era uma oportunidade de celebrar a paixão pela vida, pela cidade e pelas pessoas. Sua presença na arquibancada, com o inseparável cartão vermelho no bolso, era um lembrete constante de que o futebol, assim como a vida, é um jogo de respeito e amizade.

Em Araraquara, todos sabiam quem era Lua. Ele era o homem que, mesmo com passos lentos, caminhava firme em direção a um mundo mais gentil. Em cada gesto, em cada palavra, ele deixava um legado de amor e compreensão, iluminando a vida de todos ao seu redor, como a lua que brilha em um céu estrelado.

Saturday, 23 August 2025

Resenha da obra de Gustave Flaubert "Madamy Bovary"

 


"Madame Bovary", escrito por Gustave Flaubert e publicado em 1857, é um dos romances mais icônicos da literatura francesa. Esta obra-prima é frequentemente elogiada por seu realismo meticuloso e pela crítica social sutil que envolve. Flaubert mergulha profundamente no mundo de Emma Bovary, uma mulher cuja busca incessante por paixão e luxo a leva a um caminho de autodestruição.

O romance segue a vida de Emma Bovary, uma mulher insatisfeita e sonhadora, casada com Charles Bovary, um médico de uma pequena cidade. Desde o início, Emma sente uma desconexão com a vida que leva, desejando algo mais emocionante e glamouroso. Sua insatisfação cresce à medida que ela se entrega a romances extraconjugais e ao consumismo desenfreado, tentando preencher o vazio existencial que sente.

Flaubert é conhecido por seu estilo de escrita realista, e "Madame Bovary" não é exceção. Ele pinta um retrato vívido da sociedade francesa do século XIX, explorando temas como o tédio da vida provinciana, a hipocrisia social e a insatisfação feminina. Emma Bovary personifica a luta contra as limitações impostas às mulheres de sua época, buscando desesperadamente por algo além do que a sociedade espera dela.

Emma Bovary é uma personagem complexa, cuja insatisfação constante a leva a buscar escapismo através de romances e consumo. Sua incapacidade de encontrar felicidade em sua vida atual faz dela uma figura trágica, simbolizando a busca humana por significado e realização além do alcance.

Flaubert é famoso pelo seu estilo meticuloso, muitas vezes gastando dias em uma única frase para garantir que cada palavra fosse perfeita. Essa atenção aos detalhes é evidente no texto, onde cada cena é rica em descrições vívidas e diálogos precisos. O autor emprega uma narrativa impessoal, permitindo que os eventos falem por si mesmos sem julgamentos diretos.

"Madame Bovary" é uma obra que permanece relevante até hoje, não apenas como um exemplo brilhante de realismo literário, mas também como uma crítica poderosa das expectativas sociais e dos desejos humanos. A jornada de Emma Bovary é ao mesmo tempo trágica e universal, tornando o romance uma leitura essencial para aqueles interessados em explorar a condição humana através da literatura.

Tuesday, 19 August 2025

Resenha da obra "Enterrei meu coração na curva do rio" de Dee Brown


"Enterrei Meu Coração na Curva do Rio" é uma obra impactante e poderosa, escrita por Dee Brown, que retrata a história dos povos indígenas norte-americanos durante o século XIX. Publicado originalmente em 1970, o livro oferece uma perspectiva detalhada e empática sobre as lutas e injustiças enfrentadas pelos nativos americanos frente à expansão colonial e militar dos Estados Unidos. Este livro é uma leitura essencial para aqueles que buscam compreender melhor a história ocultada sobre os direitos e as terras indígenas.

A narrativa ocorre durante o período de expansão para o oeste dos Estados Unidos, quando os colonos e o governo federal avançavam sobre terras indígenas. O livro cobre eventos históricos cruciais, como as Guerras Sioux e a batalha de Little Bighorn, além de abordar tratados quebrados e deslocamentos forçados, como a Trilha das Lágrimas.

Dee Brown utiliza uma abordagem cronológica para narrar os eventos, com capítulos dedicados a diferentes tribos e líderes indígenas. Personagens icônicos, como Red Cloud, Sitting Bull, e Geronimo, ganham vida através de descrições vívidas e emocionantes. A obra se destaca por utilizar fontes primárias, como discursos, cartas e relatos pessoais, para dar voz aos próprios indígenas, algo raro nas narrativas históricas sobre essa época.

Um dos principais temas da obra é a injustiça perpetrada contra os povos indígenas. Brown detalha como os tratados eram constantemente violados e como as promessas feitas pelo governo raramente eram cumpridas. Essa falta de respeito e a ganância por terras e recursos são retratados de maneira a provocar reflexão e indignação no leitor.

Apesar das adversidades, o livro também destaca a resistência e a resiliência dos povos indígenas. As histórias de líderes corajosos que lutaram por suas terras e culturas são inspiradoras e mostram a determinação inabalável desses povos.

Desde seu lançamento, "Enterrei Meu Coração na Curva do Rio" tem sido aclamado por sua capacidade de mudar a percepção do público sobre a história dos Estados Unidos. A obra ajudou a fomentar uma maior consciência sobre as injustiças enfrentadas pelos nativos americanos e continua a ser uma referência importante para estudos sobre os direitos indígenas.

"Enterrei Meu Coração na Curva do Rio" é mais do que um simples relato histórico; é um convite à reflexão e à empatia. A leitura deste livro é uma experiência transformadora que ilumina aspectos da história que muitas vezes são negligenciados. Dee Brown oferece uma narrativa poderosa e necessária que continua a ressoar com leitores ao redor do mundo

 

Thursday, 14 August 2025

Sabugo: A vida no ritmo das ruas

Era manhã cedo quando Sabugo, um nome que mais parecia saído de uma história de aventura, começava seu dia. A barba longa e desgrenhada, que lhe valera o apelido, era sua marca registrada. Ele a cultivava com um certo orgulho, embora não houvesse muito que pudesse fazer para domá-la.

Sabugo era catador de papelão. Seu carrinho, um veículo improvisado para transportar seus achados, rangia e gemia a cada movimento, como se estivesse contando histórias de suas próprias batalhas diárias. Juntos, eles deslizavam pelas ruas da cidade, uma dupla inseparável no ritmo frenético de Araraquara.

Ao meio-dia, Sabugo fazia uma pausa. Sentado na beira da calçada, geralmente na esquina da rua três com a avenida Osório, embaixo da marquise onde os taxis ficavam estacionados, abria um embrulho de papel que guardava os restos de comida que conseguira recolher. Para muitos, aquilo poderia parecer pouco, mas para Sabugo, era o suficiente para matar a fome e seguir adiante.

Com sua caneca em mãos, ele observava o vai e vem das pessoas, cada uma com sua pressa e preocupações. Sabugo, no entanto, tinha um outro tempo. O tempo dos que vivem à margem, dos que enxergam o mundo por outra perspectiva.

Sabugo era um observador. Enquanto mastigava lentamente, seus olhos acompanhavam o movimento ao seu redor. Via a cidade acordar e adormecer, os rostos que passavam, as histórias que se cruzavam sem jamais se tocarem.

Ele sabia que sua vida era simples e humilde. Sabia que muitos o olhavam com desdém ou pena. Mas ele não se importava. Sabugo tinha a liberdade dos que não têm nada a perder, a sabedoria dos que aprenderam a encontrar beleza nas pequenas coisas.

Com a caneca na mão, Sabugo refletia sobre a vida. Pensava em como, apesar de tudo, ele tinha sorte. Sorte por ter saúde para continuar empurrando seu carrinho, por encontrar sempre algum alimento, por poder ver o mundo de uma maneira que poucos se permitiam.

Para Sabugo, a vida era isso: um dia após o outro, um passo de cada vez. E, no final do dia, era o sorriso que ele lançava ao carrinho, seu fiel companheiro, que dizia tudo sobre sua jornada. Em sua simplicidade, Sabugo encontrava uma paz que muitos ainda buscavam. E, quem sabe, essa fosse a verdadeira riqueza da vida.

Wednesday, 13 August 2025

Tuesday, 12 August 2025

Crônica de uma morte anunciada

 


Resenha

"Crônica de uma Morte Anunciada", escrita por Gabriel García Márquez, é uma obra extraordinária que mistura jornalismo, literatura e o inconfundível realismo mágico característico do autor. Publicada em 1981, a novela explora temas como honra, destino e a inevitabilidade da morte, mergulhando profundamente nas complexidades da sociedade e da moralidade.

A narrativa gira em torno da morte de Santiago Nasar, um jovem de ascendência árabe, em uma pequena cidade costeira. O livro começa com a notícia da morte de Santiago e, como o título sugere, todos na cidade parecem estar cientes de que ele será assassinado. No entanto, uma série de mal-entendidos e a apatia coletiva levam ao trágico desfecho.

Santiago é acusado de desonrar Angela Vicario, uma jovem que, após ser devolvida ao lar no dia de seu casamento, revela que ele foi o responsável por tirar sua virgindade. Para restaurar a honra da família, os irmãos de Angela, Pedro e Pablo Vicario, decidem matá-lo. O mais intrigante é que, apesar de suas intenções serem amplamente conhecidas, ninguém na cidade intervém de forma efetiva para impedir o crime.

Um dos temas centrais da obra é a noção de honra, que conduz as ações dos personagens. A honra da família Vicario é posta em xeque, e o ato de vingança é visto como um meio necessário para restaurá-la. García Márquez critica essa visão distorcida de moralidade, onde a reputação se sobrepõe à vida humana.

Outro tema relevante é o destino. Desde o início, o destino de Santiago parece selado, e a narrativa apresenta um forte senso de inevitabilidade. A forma como os eventos se desenrola sugere que todos os esforços para alterar o curso dos acontecimentos são inúteis.

Embora "Crônica de uma Morte Anunciada" seja mais uma investigação jornalística do que uma obra de ficção fantástica, elementos do realismo mágico permeiam a narrativa. A atmosfera onírica e a representação de eventos extraordinários como corriqueiros reforçam a sensação de fatalismo e a complexidade da realidade.

García Márquez usa uma estrutura não-linear, começando pelo fim e explorando os eventos que levaram ao assassinato de Santiago. Essa técnica aumenta a tensão e o mistério, mantendo o leitor envolvido do início ao fim. O estilo é direto, mas poético, com descrições vívidas que capturam a essência da vida na cidade e a psicologia dos personagens.

"Crônica de uma Morte Anunciada" é uma obra-prima que desafia as convenções tradicionais de narrativa e oferece uma crítica profunda à sociedade. Gabriel García Márquez, com sua habilidade única, cria uma história que é, ao mesmo tempo, um relato policial e uma reflexão filosófica sobre a condição humana. Com personagens memoráveis e uma trama envolvente, este livro é essencial para qualquer amante da literatura

 

Narciso: o tecedor de ilusões

 


Na cidade onde o sol parecia brilhar menos, vivia um homem cujo nome era sinônimo de confusão e engano: Narciso. Não era um nome de batismo, mas um apelido que a comunidade lhe dera, pois sua habilidade em manipular e tecer tramas era lendária.

Narciso era um verdadeiro artista das palavras. Sua especialidade era vender sonhos, não daqueles que se realizam, mas os que se desfazem como fumaça ao primeiro toque de realidade. Ele tinha uma habilidade notável de fazer com que suas mentiras soassem como a mais pura verdade. Quem o conhecia sabia que precisava ter cuidado, mas poucos resistiam ao seu charme sedutor e ao seu olhar magnético que prometia mundos e fundos.

Manipular era para Narciso tão natural quanto respirar. Ele entendia as fraquezas humanas e as explorava com precisão cirúrgica. Suas palavras eram armas afiadas, capazes de cortar através das defesas mais robustas. Amigos e familiares, todos já haviam sido vítimas de suas artimanhas, mas muitos escolhiam ignorar, talvez por medo, talvez por esperança de que um dia ele mudasse.

Narciso tinha uma maneira peculiar de virar uma situação a seu favor. Quando confrontado, desviava o olhar, mudava de assunto ou fazia com que a culpa caísse sobre o outro. Seu jogo era complexo, um xadrez emocional onde ele sempre estava muitos passos à frente.

Wednesday, 6 August 2025

Ele, a bola, o goleiro e o gol: a decisão nos pênaltis

 


O jogo chegou ao seu clímax com o empate persistente, levando à decisão nos pênaltis. Em campo, o nervosismo era palpável. O goleiro, embora sentisse as pernas tremerem, mantinha uma confiança inabalável. Do outro lado, o centroavante estava tenso, mas determinado a cumprir seu objetivo.


O centroavante se preparou para a cobrança. O goleiro, tentando desestabilizá-lo, avançou um passo à frente. O juiz interrompeu a jogada, anulando o chute. O centroavante, confuso, percebeu que o goleiro tentava desorientá-lo. Com um sorriso provocador, o goleiro murmurou algo inaudível enquanto devolvia a bola.


A torcida estava em polvorosa, reagindo com vaias. O goleiro, agora advertido com um cartão amarelo, voltou para sua posição, continuando a indicar o canto em que esperava o chute. O centroavante, por sua vez, se concentrou, ajustando os meiões e o calção, tentando não se deixar afetar pelo turbilhão à sua volta.


Quando o apito do juiz soou novamente, a surpresa tomou conta do campo: um torcedor invadiu o gramado, ajoelhando-se diante do centroavante e sussurrando palavras de apoio. A segurança rapidamente interveio, mas o gesto já havia acendido uma faísca de confiança no jogador.


Com a situação sob controle, o juiz sinalizou para que a cobrança fosse retomada. O centroavante ajeitou a bola, enquanto o goleiro, com uma atitude desafiadora, trocava palavras ríspidas com o árbitro. O silêncio tomou conta do estádio, enquanto o centroavante se preparava para o momento decisivo.


A pressão sobre os ombros do centroavante era imensa. Lembranças das narrações da infância, a responsabilidade pelo destino do time e a expectativa da torcida ressoavam em sua mente. O goleiro, ciente de seu papel crucial, também estava em seu próprio conflito interno, equilibrando a esperança e a tensão.


O apito do juiz rompeu o silêncio. O centroavante correu, chutou, e a bola seguiu uma trajetória dramática: tocou na trave, na outra, bateu nas costas do goleiro e, finalmente, cruzou a linha do gol. A explosão de alegria da torcida foi ensurdecedora. O goleiro, deitado no gramado, socou o chão em frustração, enquanto seus companheiros se reuniam para consolá-lo.


A cena era um verdadeiro espetáculo de emoções, onde os heróis e vilões se confundiam em meio ao caos e à euforia. O futebol, com toda sua imprevisibilidade, havia proporcionado mais um capítulo inesquecível. Naquele momento, a alegria do gol e a tristeza do goleiro simbolizavam a beleza e a crueldade do esporte.

Monday, 4 August 2025

Desejo e traição


Ela estava casada há mais de dez anos, vivendo uma vida que muitos chamariam de comum, mas que para ela tinha seu próprio encanto. Com um cotidiano que girava em torno da casa e da família, sua rotina era previsível, mas segura.

Passava longas horas na casa da mãe, um refúgio de afeto e apoio. Gostava de ajudar nas pequenas tarefas e compartilhar as novidades do dia. As conversas fluíam naturalmente, entre risos e recordações, até que o relógio a lembrava de sua outra missão: buscar a filha na creche.

Antes de retornar ao lar, sempre se certificava de que tudo estivesse em ordem para a chegada de Beto, seu marido. A casa limpa, o jantar pronto, e a filha feliz; tudo cuidadosamente alinhado para que pudessem desfrutar de uma noite tranquila em família.

Apesar de sua dedicação à família, ela não era imune aos encantos do mundo exterior. Havia algo nas ruas da cidade que a atraía e a fazia sentir-se viva de uma maneira diferente. Trocas de olhares, sorrisos e pequenos flertes eram uma parte secreta de seu dia, uma brincadeira inofensiva que nunca cruzava a linha do respeito que tinha por Beto.

Esses momentos de sedução passageira eram quase um segredo íntimo, algo que existia apenas em sua mente e nas conversas informais com as amigas. Ela assegurava a elas que essas aventuras eram apenas tolices, uma forma de lembrar-se de que ainda tinha poder de atração, mas que, no final do dia, o verdadeiro amor e segurança estavam em casa, ao lado de seu marido.

Para ela, esses pequenos gestos com outros homens não significavam uma traição real. Eram, na verdade, uma forma de reafirmar seu compromisso com Beto, lembrando-se de que, apesar das tentações do mundo, seu coração e lealdade pertenciam a ele. Ela encontrava paz nessa certeza, sabendo que, apesar das distrações, o amor verdadeiro era o que realmente importava.

Em suas palavras às amigas, ela repetia que as pequenas aventuras eram apenas besteiras, e que homem bom mesmo era o seu marido. Essa convicção a sustentava e a fazia acreditar que a vida que escolheu era a melhor para ela, recheada de simplicidade, amor e um toque de mistério que apenas ela entendia.



Thursday, 31 July 2025

Travessuras de uma Menina Má



"Travessuras de uma Menina Má", do famoso escritor peruano Mario Vargas Llosa, é um romance que transborda ironia, paixão e uma incessante busca por um amor que se revela tanto idealizado quanto elusivo. Publicado em 2006, o livro mergulha o leitor na vida de Ricardo Somocurcio, um tradutor e intérprete que, desde a adolescência em Lima, se vê irremediavelmente enfeitiçado por uma misteriosa e volátil mulher, que ele carinhosamente apelida de "a menina má".

A narrativa, contada em primeira pessoa por Ricardo, abrange várias décadas e cenários internacionais, desde a efervescência de Paris nos anos 60 até a Londres boêmia, a Tóquio exótica e a Madri cosmopolita. Essa "menina má", cujo nome real nunca é o mesmo por muito tempo – Lily, Nidia, Cármen, Otília, entre outros –, é a personificação da inconstância. Ela surge e desaparece da vida de Ricardo com a mesma facilidade, sempre motivada por interesses pragmáticos e uma ambição quase predatória. Seja casando-se com homens ricos, envolvendo-se em causas revolucionárias ou buscando ascensão social, ela usa seu charme e inteligência para manipular e prosperar, deixando um rastro de corações partidos, mas, paradoxalmente, nunca perdendo a admiração e a devoção de Ricardo.

O grande motor da trama é a obsessão de Ricardo. Ele é o anti-herói romântico, o homem que aceita ser subjugado por um amor platônico e, muitas vezes, doloroso. Enquanto a menina má avança e se reinventa, Ricardo permanece ancorado em sua paixão, sempre à espera de um reencontro, sempre disposto a perdoar e a oferecer seu amor incondicional. Essa dicotomia entre a volatilidade dela e a lealdade dele cria uma tensão constante e questiona os limites do amor e da idealização.

Vargas Llosa, com sua prosa magistral, constrói personagens complexos e um enredo que, apesar de aparentemente simples, revela camadas profundas sobre a natureza humana. A linguagem é rica e envolvente, pontuada por descrições vívidas dos ambientes e um humor sutil que permeia as desventuras do protagonista. O autor explora temas como o desejo, a memória, a identidade e a busca pela felicidade, sempre com um olhar perspicaz e, por vezes, melancólico.

Um dos pontos mais interessantes da obra é a reflexão sobre a identidade. A menina má, ao mudar constantemente de nome e persona, questiona a própria ideia de quem somos e como nos apresentamos ao mundo. Para Ricardo, no entanto, ela é sempre a mesma, a garota de sua juventude, a mulher que o enfeitiçou. Essa permanência da imagem idealizada dela na mente dele é um tributo à força do primeiro amor e da memória afetiva.

"Travessuras de uma Menina Má" não é um romance para quem busca um final feliz tradicional. É uma obra que convida à reflexão sobre a natureza do amor romântico e a complexidade das relações humanas. Vargas Llosa, como um cirurgião da alma humana, dissecou a paixão em suas diversas facetas, mostrando que o amor, por vezes, é mais sobre a busca e a idealização do que sobre a posse ou a reciprocidade. É uma leitura cativante, que prende o leitor do início ao fim, deixando um sabor agridoce e a certeza de ter lido uma obra de arte literária.


Monday, 28 July 2025

O encontro inusitado

 


Ele já estava aposentado e possuía uma vida confortável quando decidiu aventurar-se em um encontro romântico com ela. Ela sempre sonhou em experimentar o amor em um hotel. Já tinha visitado motéis, casas de todos os tipos e os mais variados modelos de carros, mas sempre achou que em um hotel seria diferente. Após muita insistência, ele finalmente aceitou a ideia.

Era uma noite fria de sábado e eles combinaram de se encontrar na praça central da cidade. Ansiosa pelo tão esperado dia, ela decidiu atrasar-se um pouco para aumentar a expectativa. Ele, que a esperava há quase uma hora, já estava com o apetite aguçado. Quando ela chegou, ele ficou nervoso. Falou alto, gesticulou, e mesmo irritado com a demora, a convidou para jantar antes de seguirem para o destino.

Sendo um homem casado, ele precisava escolher um local discreto para o jantar. Optou pela taverna do Alemão, um lugar afastado do centro, conhecido pela qualidade da comida, e onde tinha certeza de que sua presença não seria comentada. Já havia estado lá com outras mulheres sem que o Alemão mencionasse nada, então se sentiu seguro.

Ele pediu: Espaguete

Ela pediu: Peixe assado, acompanhado de vinho branco e seco

Durante o jantar, a conversa foi leve. Ela tentou saber mais sobre os problemas dele, mas ele, sempre reticente, mudava de assunto, enquanto discretamente passava a mão pelas pernas dela debaixo da mesa.

Após o jantar, ele pagou a conta. Em um gesto carinhoso, ela tentou segurar sua mão, mas ele rapidamente a tirou e colocou no bolso. Tentou segurar seu braço, mas ele se esquivou dizendo com um sorriso malicioso:

_ "Hoje quero comê-la da cabeça aos pés!"

Ela o olhou com curiosidade enquanto ambos se dirigiam ao carro. No caminho até o hotel, o silêncio era quebrado apenas pela música suave que tocava ao fundo.

Ao chegar ao hotel, ele pediu a chave na recepção e a abraçou enquanto chamava o elevador. Quando a porta se abriu, ele se deparou com sua sobrinha saindo abraçada com dois rapazes. O choque foi mútuo, mas ela rapidamente sinalizou silêncio levando o dedo aos lábios. Ele, ainda espantado, abaixou a cabeça e, ao levantá-la, piscou para ela, imitando o gesto.

 

Thursday, 24 July 2025

Coisas ruins que vem de você!

 


"Você acha que não vai me prejudicar agindo assim?", Daniela perguntou, olhando fundo nos olhos de Benito.

Benito retribuiu o olhar. "Por que você acha que eu a prejudicaria?"

"Você sabe que sou casada. Isso me afetará muito se você continuar agindo dessa forma!", Daniela sussurrou.

"De que forma?", Benito respondeu, se aproximando. "A única coisa que penso em te dar é o meu silêncio." Ele colocou o indicador sobre a boca.

"Não posso me aproximar mais de você. Você sabe disso!", Daniela falou, colocando a mão sobre os ombros de Benito.

"Você pode escolher, Dani, entendeu? Respeitarei sua decisão. Vou ficar magoado e triste se tiver que ficar longe de você, mas ficarei", disse Benito, levando a mão ao rosto.

"Vai ser difícil para mim também ficar longe de você. Você tem a capacidade de aumentar minha autoestima. Eu gosto disso. Me sinto paquerada, desejada, e você me faz sentir sempre melhor. Gosto de te procurar. Sempre quero saber se você está me olhando. Sabe, por incrível que pareça, não tenho ciúmes de você. Fiquei magoada quando começou a me ignorar, a fingir que eu não existia. Não me contive, tive que falar com você", Daniela disse, apreensiva.

"Eu não quero servir só para aumentar sua autoestima! E eu, como fico?", Benito respondeu, levando as mãos ao peito.

"Estou assustada. Você chega assim e diz, sem mais nem menos, que está apaixonado por mim! Eu não estava preparada para isso. Você me entende?", Daniela disse, com uma expressão aflita.

"Só fiquei muito brava uma vez com você. Uma vez que passei por você e você nem me olhou. Eu até bati firme com o pé no chão para ver se chamava sua atenção e você nem aí... nem me deu trela. Fiquei muito brava", Daniela falou com ternura.

"Eu vou tirar você da minha vida!", Benito respondeu, parecendo nervoso.

"Você ficou dois meses sem aparecer. E quando vem quer que eu jogue confete para cima de você. Eu vou mesmo é fazer de tudo para tirar você da minha vida, mesmo que você nunca tenha entrado", disse Benito, segurando a mão de Daniela.

"Nós nunca tivemos nada. Você sabe disso, Benito! Não pode me obrigar a nada", Daniela retrucou, nervosa.

"Por isso mesmo é que de agora em diante... quero que você fique com o seu marido...", Benito retrucou, nervoso.

Daniela olhou fixamente nos olhos de Benito. Deu dois passos, beijou-lhe a boca e o abraçou.

"O que você pretende com isso, Daniela?", perguntou Benito.

"Para você não me esquecer e sempre achar que terá a chance de ter algo comigo. É sempre... nosso eterno jogo de sedução", Daniela respondeu, sorrindo.

"Não vou servir de massagista para o seu ego inflado", disse Benito, desapontado.

"Eu sei que você não me resiste. Basta eu olhá-lo nos olhos e pronto. Você se derrete todo", Daniela respondeu com empáfia.

"Eu não teria tanta certeza", falou Benito, coçando a cabeça. "Eu nunca me interessei em saber o número do seu celular. Nem ao menos o seu endereço de internet."

"Eu jamais os daria a você. Tenho a certeza de que você seria daqueles que ficaria me amolando o tempo todo com história de homem apaixonado", disse Daniela, segurando o celular.

Benito se aproximou de Daniela, a agarrou pela cintura e a beijou. Daniela tentou se esquivar, mas Benito a segurou com força.

"Me solte, seu cretino, idiota. Eu sou uma mulher casada", Daniela falou, tentando empurrar Benito.

"Isso não faz a menor diferença. Eu já lhe disse que não tenho ciúmes de você ou de quem quer que seja", respondeu Benito, confiante.

"Eu preciso ir embora, você quer anotar o número do meu celular?", disse Daniela, se aproximando de Benito.

O Estádio Municipal Tenente Siqueira Campos: um campo de memórias esportivas de Araraquara


O antigo Estádio Municipal Tenente Siqueira Campos é, de fato, um marco na história esportiva de Araraquara. Para muitas gerações, seu gramado emblemático foi o palco onde o futebol da cidade desfilou, criando memórias e tradições.

Sua localização peculiar, ao lado do Cemitério São Bento, conferia ao Tenente Siqueira Campos uma atmosfera única, uma fusão de saudosismo e nostalgia. Essa proximidade, para alguns, evocava a passagem do tempo e a efemeridade das glórias. A presença de um flamboyant majestoso em frente ao portão principal não só amenizava o calor dos jogadores e torcedores, mas também se tornou um símbolo do local, um ponto de referência que guardava inúmeras histórias sob sua sombra.

Este estádio tem uma história rica, incluindo ter sido a casa da ADA – Associação Desportiva Araraquarense. Este time, que vestia azul e branco, construiu sua trajetória esportiva entre as décadas de 1950 e 1960. Seus duelos contra a Associação Ferroviária eram lendários, dando origem ao famoso derby FERROADA.

Para quem teve o privilégio de vivenciar a época áurea do Estádio Municipal Tenente Siqueira Campos, é impossível não recordar as figuras icônicas que, com suas personalidades e talentos, transformaram o local em uma verdadeira lenda do esporte araraquarense. Essas pessoas não apenas fizeram parte da história do futebol da cidade, mas também encarnavam o espírito do estádio:

O Petita: O guardião das chaves do estádio, conhecido por sua bravura e por zelar pelo local como se fosse sua própria casa. Ele era a primeira e a última pessoa a ver o gramado, um símbolo da dedicação ao esporte.

O Edimar Claro: Um goleiro lendário, cujas defesas tornavam sua meta quase intransponível. Sua presença no gol inspirava confiança e era um pesadelo para os atacantes adversários.

O Chumbinho: Famoso por seu chute potente e seus gols homéricos, Chumbinho era o artilheiro que decidia jogos e levava a torcida ao delírio. Seus arremates eram sinônimos de perigo constante.

Seu Armando Clemente: Um treinador de grande sapiência e clareza. Sua visão estratégica e capacidade de transmitir seus conhecimentos aos jogadores eram fundamentais para a construção das vitórias.

Zé Lemão: Com seus gritos histéricos à beira do campo, Zé Lemão era um show à parte. Apesar do jeito expansivo, sua grande capacidade de liderança e paixão pelo jogo eram inegáveis.

Tota: Um verdadeiro comandante, Tota tinha um jeito peculiar de liderar, apontando o dedo e direcionando cada jogador. Sua presença era marcante e sua liderança, decisiva para as conquistas do time. Entre muitos outros

O Tenente Siqueira Campos não era apenas um campo de futebol; era um ponto de encontro, um espaço de convivência e a materialização da paixão de Araraquara pelo esporte. As histórias de partidas épicas, gols memoráveis e a energia da torcida ainda ecoam nas lembranças daqueles que tiveram a oportunidade de vivenciar a magia desse lugar.

 


Tuesday, 15 July 2025

O Beijo de Lamourette

 


"O Beijo de Lamourette"

Robert Darnton

 

Robert Darnton Robert foi Professor da Universidade Carl H. Pforzheimer e Diretor da Biblioteca Universitária de Harvard.

"O Beijo de Lamourette" é uma obra que nos transporta para um período de intensas transformações na França: a Revolução Francesa. O livro, escrito por Robert Darnton, não é um romance histórico tradicional, mas sim uma profunda incursão no universo da história cultural e intelectual.

O título, intrigante, remete a um episódio real: o Beijo de Lamourette, um momento de conciliação efêmera e, em última instância, ilusória, entre as diferentes facções políticas na Assembleia Nacional durante a Revolução. Esse evento serviu como uma metáfora para a fragilidade dos acordos e a inconstância dos ideais revolucionários.

A grande força do livro reside em sua capacidade de explorar as mentalidades, os discursos e os símbolos que moldaram a experiência revolucionária. O autor se debruça sobre uma vasta gama de fontes, desde panfletos e jornais da época até correspondências pessoais e registros policiais, para reconstruir o panorama intelectual e emocional daquele período. Ele nos mostra como as ideias circulavam, como as paixões políticas se manifestavam e como a linguagem era utilizada como arma e escudo.

Em vez de focar nos grandes nomes e nos eventos macroscópicos, "O Beijo de Lamourette" se aprofunda nos detalhes da vida cotidiana e nas pequenas histórias que revelam as tensões e contradições da Revolução. O autor investiga, por exemplo, a censura, a imprensa clandestina, as sociedades secretas e a proliferação de boatos, demonstrando como esses elementos contribuíram para a efervescência e a instabilidade do período.

Para quem busca uma compreensão mais aprofundada da Revolução Francesa, para além dos fatos cronológicos e dos nomes dos grandes líderes, "O Beijo de Lamourette" é uma leitura essencial. É um livro que nos convida a pensar sobre a natureza da história, a complexidade das mudanças sociais e o poder das ideias. A escrita é densa, mas recompensadora, exigindo do leitor uma postura ativa e reflexiva.

 

Thursday, 3 July 2025

Enquanto o infarto não vem...


Enquanto o infarto não vem, a noite passa. Noite regada a charuto dominicano e vinho italiano - entre uma baforada e outra, um gole no vinho encorpado, de vermelho renitente e viscoso. 

Quando o dia amanheceu, a sua cabeça estava parecendo um sino de Belém, tocava a todo instante em um volume e tom, cujo som repercutia em ondas insistentes, desafiando até o mais precioso dos diapasões. Era como se ecoasse dentro dos seus ossos.

Ele teve a certeza de que misturar o aroma do vinho e o paladar do tabaco seria um convite a reflexão sobre algumas coisas de sua vida. Uma ousadia líquida e sublime descia pela sua garganta com a promessa de que aqueceria a sua alma.

Ledo engano, quando o sol apontou no horizonte, a realidade se apresentou com todo o seu peso. À volta do sofá, as garrafas vazias formavam um mosaico de excessos, testemunhas silenciosas de uma noite de indulgência. O vinho, o companheiro vibrante e saboroso, agora servia como lembrança de um prazer que cobrava o seu preço na forma de ressaca.

No meio do caos matinal, entre os resquícios de fumaça e o aroma do vinho, lembrou-se do português Osvaldo Alcântara:

Enquanto o infarto não vem...

"Eu estarei de mãos postas, à espera do tesouro que me vem na onda do mar...

A minha principal certeza é o chão em que se amachucam os meus joelhos doloridos,

mas todos os que vierem me encontrarão agitando a minha lanterna de todas as cores

na linha de todas as batalhas."

 


Sunday, 1 June 2025

O cigarro, o café e o cinzeiro

 


 A solidão da noite diz muita coisa. Até a luz da lua fica mortiça e embaçada. A TV não para nos canais, é um zap zap sem fim. O desassossego é eminente. Café e cigarro fazem companhia em momento impróprio, mas ele sempre acha que o álcool não será uma boa companhia. O café tira o sono e o cigarro é nostálgico. 

Ele lembrou da definição de Carlos Heitor Cony para quem nostalgia é saudade de um tempo que já se foi e a melancolia, a saudade de um tempo nunca vivido. Na noite, melancolia e nostalgia sem unem em torno de um não sei que sem fim e os cigarros vão se avolumando no cinzeiro. A casa cheirando a fumo e café o lembrou de um tempo que ficava sentado à frente da máquina de escrever esperando as ideias chegarem e os papéis se amontoarem na lixeira após o erro gramatical.

Agora, a situação era outra, a máquina de escrever está na bagunça do escritório, as ideias, perdidas no tempo e no espaço infinito da noite, as palavras sumiram, desapareceram e os textos rarearam e quase não existem mais, o que restou, foram apenas o cigarro, o cinzeiro e o café de cor desbotada e ralo, quase um chafé.

O sono, desapareceu, o que resta para ele é a existência, o pensamento vago,  perdido e o silêncio. O silêncio é tudo e nem a bagunça das redes sociais com suas futilidades chamam a atenção no momento.

O silêncio e a solidão são irmãos na noite. As taças não são sinônimos de felicidade. Até tempos atrás, felicidade era encaixar a palavra perfeita em um texto literário, agora, tudo mudou, nem sabe ao certo se esse conceito ainda existe, tal o desassossego que o habita e o corrói de forma agressiva.

                    A ansiedade é a mãe das horas difíceis - ela acelera o coração e distorce os pensamentos e                      quando se olhou no espelho, a frase do poeta lhe veio à mente "eu vi cara da morte e ela                         estava viva".

                    

Wednesday, 23 April 2025

O Tim de muitos campos e espaços


O cigarro entre os dedos, a fala mansa e a magrela azul eram marcas indeléveis do Tim. Costumava chegar devagar ao campo do ACCO com sua magrela carregando um saco de uniforme, com camisas, meias e calções.

Tim era dono de dois times de futebol na cidade de Araraquara: o Fluminense e o Flamengo. Tim  costumava chamar "seus" garotos usando um assovio tradicional, esse artifício era muito comum nos anos setenta e oitenta, geralmente feito pelos pais quando queriam chamar seus filhos para alguma tarefa doméstica ou escolar.

Tim usava alguns campos da cidade para treinar os seus times. Um dos locais mais usados era o "campão", o rapadão, como a galera da época chamava. Reza a lenda que no campão não podia nascer grama, o campo ficava feio, tinha que ser do jeito que era, de terra batida e esburacado, assim era bem melhor. O campão ficava próximo à avenida trinta seis entre as ruas nove e onze. Aquele campo era esquisito, tinha vários buracos de erosão em seu meio e era todo torto, com suas traves de madeira maciça era o "point" do futebol amador de Araraquara.

Outro campo utilizado por Tim para treinar a molecada fica em frente ao estádio da Fonte Luminosa, na parte debaixo. O campo é torto, assim como o campão, mas ele ainda possui grama, mas como quase nunca cortam, geralmente está impróprio para a  prática do esporte bretão, a bola se esconde na grama e a molecada pena para jogar, mas enfim, era o que tinha para a época e ninguém reclamava, nem o Tim, embora na realidade, não tenha mudado muita coisa. 

O que a moçada queria mesmo era jogar futebol, não importava o campo em que jogava. Ganhar ou perder era uma questão de perspectiva, geralmente os times do Tim competiam, isso era o mais importante. 

Alguns jogadores de sucesso profissional passaram por seus times, entre eles "João Batista Lopes", o Abelha, ex goleiro da Ferroviária, São Paulo, Flamengo e São Bento de Sorocaba que revezava suas defesas entre os dois times do Tim.

Assim como Tota, Seu Armando Clemente, Zé Lemão, Tim colocou seu tijolinho na construção do esporte na cidade de Araraquara e deixou marcas sustentáveis nas gerações dos anos setenta e oitenta e ainda próximo do octogenário, ainda tenta deixar um legado para as novas gerações.










 

 


Wednesday, 19 March 2025

O Narciso, o portão e a maria mole


 

A molecada chegava cedo para a prática da educação física e se aglomerava no portão do Narciso da Silva Cesar que fica na rua quatorze, entre as avenidas Cristovão Colombo e Bandeirantes. O portão da escola velho e enferrujado que era unido por uma corrente cor laranja por causa da corrosão servia de gol enquanto o professor não chegava.

Em frente ao portão, tinha o boteco do Pedro cheio de cachaça na estante, uma gôndola de doces caseiros e de chicletes “Ploc” que fazia a alegria dos moleques. Pedro era um sujeito gordo, bonachão e austero, com cara de bravo e que sempre se negava a vender fiado para a molecada. O máximo que fazia era dar um copo d’água da torneira. A limpeza do copo era duvidosa, a água apresentava um aspecto turvo e às vezes, esverdeado, mas na ânsia de matar a sede, qualquer coisa estava certa. De vez em quando, os moleques entoavam o coro: “ei, Pedro, vtnc” para “homenageá-lo” e os gritos só paravam quando o portão se mexia, o professor havia chegado.

O professor era o Seu Carlos, ele usava barba longa e era calvo. Era um sujeito legal, com seu jeito calmo e fala mansa, conquistava a molecada. Ele ensinava com maestria, era detalhista nos movimentos dos esportes: um toque no vôlei, um arremesso no basquete, um chute a gol, tudo era meticulosamente ensinado e explicado, sua didática era fantástica, valia demais a sua aula.

A molecada gostava mesmo era de jogar futebol. O vôlei, o basquete e o handebol eram deixados de lado, portanto, jogar futebol era fundamental na educação física. Seu Carlos ficava em apuros, dizia que o futebol não precisava ser explicado e insistia nos treinos de vôlei, o que parecia ser seu esporte preferido. A molecada ficava brava, mas ninguém se indispunha com o professor, ele era gente boa demais.

Quando a educação física acabava, a molecada corria para o bar da Santa Izildinha que ficava na esquina da rua treze e meio para comer maria mole e tomar tubaína, muitos iam na sorveteria do Cidão que ficava do outro lado da esquina, tomar aquele sorvete de origem estranha, mas que era tão bom quanto a um Kibon e custava bem menos.

Nenhum dos moleques tinha dinheiro, tudo era resolvido na conversa, as vezes na porrada mesmo, vire e mexe uma briguinha básica para sair da rotina, mas a alegria era contagiante e no dia seguinte, tudo estava bem e dentro dos conformes.