Monday 4 June 2007

A Casa da rua 5 (ROMANCE AINDA INACABADO)


A CASA DA RUA 5
A. J. PIERINI

Acordei com dor de cabeça. Acho que a cerveja de ontem me fez muito mal. Tomei um comprimido achando que fosse melhorar, mas até agora nada. Tenho tanta coisa para fazer, mas estou com preguiça. Acho que vou ficar na cama. Tenho um compromisso com alguns livros. Resta saber em qual deles irei me aventurar hoje. Não quero nem abrir as janelas do quarto. Não quero ver a claridade do dia. O máximo que farei será acender a luz mortiça desse quarto. O dia de trabalho não existirá. Na verdade eu quero apenas vadiar pela casa. Talvez eu vá até o quintal regar as plantas que já devem estar murchas afinal de contas, não chove faz vários dias. Estou com a idéia também de arrumar o meu guarda-roupa. Ele está todo bagunçado, aliás,eu não venço fazer isso. Na correria do dia-a-dia é só puxar a camisa que está as vezes no meio do monte e desfaze-lo todo. Não aprecio arrumar novamente a hora em que chego em casa. O cansaço é tanto que muitas vezes apenas me jogo e me esparramo sobre a cama. Eu acho melhor deitar-me, puxar o cobertor, pegar o livro, abri-lo na página com o marcador e esquecer do tempo. Lógico que tenho que prestar a atenção na leitura. Se não, não adianta nada ler. Não vou conseguir assimilar nada mesmo. Hoje vou ter preguiça de até mesmo ir ao banheiro. Se bem que aquela banheira é muito convidativa. Poderia me dar ao luxo de beber aquele vinho enquanto tomo um banho de espuma. Tenho certeza que ficarei apreciando aquele lustre antigo no teto. Olhar aquele piso em forma de mosaico que o banheiro possui também me deixará um pouco tonto. É melhor eu não me arriscar. Se eu me deitar na banheira, corro o risco de morrer afogado na espuma. Vou dormir e acordar de forma abrupta achando que o lustre está me devorando ou mesmo que estou rodopiando sobre aquele mosaico. Estou ouvindo o barulho do meu passo no assoalho. A minha sombra está me assustando na parede alta da sala. Na verdade, acho que estou com medo. As portas brancas e decoradas da casa chacoalham à medida que são atingidas pelo vento e aí eu sempre acho que tem alguém querendo entrar na casa. Fico feliz por que a solidão nessa casa me faz bem.O silêncio me penetra a alma. Sinto paz em meu interior. A minha sombra chega ao teto da casa. O castiçal que está sobre a mesa da sala possui velas vermelhas. É melhor acende-las, talvez não me sinta tão só. Pensando bem, vou me estirar sobre a cama. Acho que aquele lençol está sujo. É melhor coloca-lo para lavar. E colocar um novo no lugar. Adoro cheiro de coisa limpa. A fome já está me perseguindo. Tenho que ir até à cozinha. Não posso chegar lá, sem antes cruzar a sala. Tenho pavor da minha sombra alta que se espicha até o teto. É um medo que tenho que enfrentar. Se ao menos eu tivesse a coragem de abrir as portas, ou mesmo as janelas da casa, poderia sentir o vento a se espalhar. Se bem que a rua da casa é muito escura. As árvores que revestem a rua a tornam misteriosa. Aliás, eu acho que todas as casas dessa quadra são misteriosas. Tem algo místico ou do além. As vezes pressinto alma penada rondando à noite. Por isso a precaução de sempre chegar em casa cansado. Assim, não arrumo pretexto para permanecer acordado. Poderia ligar a televisão, pelo menos alguém falaria na casa, mas hoje só quero silêncio. A cozinha possui azulejos brancos, uma pia de mármore com a cuba profunda. A geladeira Prosdócimo antiga, do tempo da trava. O piso imita o do banheiro, assim como lá, procuro ficar distante. O mosaico não me atrai muito, principalmente a sua cor, preto. Até evitei em abrir a torneira da pia para não fazer barulho. O único ruído que ouço agora é das mordidas da maçã que estou comendo. Me sento sobre o banco da mesa da cozinha mas evito olhar para o chão. Prefiro olhar a porta e sua maçaneta revestida a ouro. Prefiro olhá-la por que afinal de contas ela brilha, dá sinal de vida à casa. O computador talvez seja uma boa companhia, posso conversar com outras pessoas sem sair de casa. Aliás, posso girar o mundo com apenas um botão. Cada vez menos acho que precisamos uns dos outros. Posso até arrumar uma namorada virtual, mas terei que agüentar o barulho do drive do computador. Aquele barulho renitente me perseguirá a todo momento me atazanando as idéias. As pessoas são muito más, por isso ainda prefiro a solidão. Nada me impediria de ligar o computador e de me comunicar com outras pessoas. Estou sozinho mesmo em casa, poderia fazer qualquer coisa. Entrar em uma sala de bate-papo, conhecer algumas garotas. Fazer sexo virtual ou mesmo usar a mini-câmera para expor meu dote sexual, mas, nada disso me atrai, prefiro o silêncio da casa da rua cinco. Ela me completa totalmente. O que mais me atrai nessa casa é o aspecto antigo que ela possui e o ar bucólico. Quando chego à janela do meu quarto que dá de frente para a rua tenho a sensação de que fantasmas de vem me visitar. É como se eles me dissessem bom-dia, a cada vez que a abro. O vento parece que é soprado pelas pessoas que já moraram por aqui. E isso me dá a sensação de estar vivo. Permaneço sentado sobre a cadeira na cozinha. Estou vendo o pote de café em cima do armário. Me deu vontade de arrumar a mesa e preparar o café. É claro que não possuo a intenção de receber visitas, por isso mesmo a mesa tem que ser modesta, sem sofisticação. Apenas leite, café, pão e manteiga. Se alguém bater na porta, o silêncio demonstrará que não há ninguém em casa. Não quero ser importunado. Ainda mais na hora do café, uma vez que não tenho os itens necessários dignos de receber uma visita. A minha grana tem sido até razoavelmente boa, mas evito os gastos com supérfluos. Apenas consumo o necessário. Quando vou pegar a chaleira no armário da cozinha, uma barata aparece em minha visão. Ela correu atrás do lixo do cozinha. Eu derrubo o lixo e a barata corre para dentro do armário. Sou obrigado a tirar tudo que há dentro para poder mata-la. Lhe dei uma chinelada que ela ficou estatelada no chão, esperando a vassoura e a pá para recolhe-la. Não queria fazer tanto barulho. O som das panelas me deixou enjoado, fiquei de mau humor, mas não me tirou a vontade de fazer o café. Pus a água para ferver no fogão que já é antigo, o fogo demorar a acender. Nesse momento pensei em desistir do café, mas a teimosia falou mais alto. Enquanto a água ferve eu posso ler um livro ou continuar lendo aquele em que parei, já que eu acho que vai demorar um pouco para ela esquentar. Se eu fosse mais moderno, poderia ter comprado uma cafeteira. Assim, faria poucos movimentos e utilizaria menos utensílio para obter o mesmo resultado. Hoje, somos escravos da modernidade, portanto, acho que devemos resistir um pouco à lei do menor esforço. Contribuo para que o homem tenha um pouco mais de utilidade sobre a terra. As vezes me sinto tão inútil embora isso não tire meu sono. Não vou deixar de dormir por achar que muitas vezes poderei me achar inútil. Como posso modernizar uma casa que é muito antiga? Não seria um contrasenso? Já chega o computador que tenho aqui. A arquitetura da casa não combina com um computador. É o novo e o velho se vendo o tempo todo. As vezes acho que até a televisão não combina com essa casa. Desisti de continuar lendo o livro, tenho que pegar os utensílios para fazer o café e isso demora um pouco. Me esqueci de que o coador está sujo. Tenho que lava-lo. Tenho nojo de lavar o coador, aquele pó marrom seca e depois de algum tempo fica fedendo. A garrafa de café faz tempo que eu não uso. Deve ter café bem antigo dentro, o que também tenho um certo asco. O cheiro do café que sai da garrafa me da náusea. Tenho que deixar a água ferver antes de abrir a garrafa. É uma tática que utilizo para não sentir o cheiro de café antigo. Só tem duas fatias de pão. Eu acho que para matar a minha fome matutina está bom. Não quero pensar no almoço, tenho que ver as possibilidade para esse momento. Vou preparar a bandeija para ir comer lá no quarto. Assim, me cubro com o cobertor, estico as pernas e ponho a bandeija sobre elas. Ficarei confortável. Tenho a certeza que terei prazer. Quando a água ferveu, tomei cuidado para não derruba-la sobre a pia, mas o esforço foi em vão. Foi tão em vão que caiu sobre o meu braço, abrindo logo um vermelhão. Tive que suportar a dor para não derrubar a chaleira. Isso me atormentou um pouco mas me ative aos afazeres. Preparei o café com garbo e elegância. Peguei o jogo de xícaras novo que havia comprado a poucos dias. Era o dia da estréia. Fiquei todo pomposo. Coloquei o pires e em seguida fiquei observando a xícara. O café estava muito quente. A fumaça logo se fez presente, mas a espantei com o leite gelado. Pena que a margarina já estava acabando, precisei até raspar o fundo com a faca e fiquei torcendo para que desse às duas fatias. Coloquei o café e o pão sobre a bandeija e me dirigi ao quarto. Espero que com essa refeição a dor de cabeça se finda. Quero tomar esse café em silêncio. Quero ouvir apenas o tilintar da xícara no pires. Não quero ouvir nem o barulho da minha degustação. Nem posso acreditar que hoje eu tenha decretado o dia da preguiça total. Quero ver como essa casa se comporta durante o dia, já que todos os dias eu estou ausente, exceto é claro os sábados e os domingos. Fazia tempo que eu estava desejando passar um dia de semana em minha própria casa. Talvez eu veja algum bicho estranho passear por ela, movimento o qual eu nunca vi por aqui. Isso porque me considero um ser animal extremamente urbano e me ligar demais nos compromissos do cotidiano. Eu acho que se eu ficar mais em casa, vou descobrir coisas novas por aqui ou mesmo descobrir necessidades para ela. O que eu quero mesmo é visitar o jardim, lá no quintal. Acho que não fui ainda por causa da luz do dia, ela ofusca minha visão. Mas o jeito é me concentrar no café e tomar cuidado para não derrubá-lo sobre a cama. Se não terei mais serviço a fazer e lavar roupas não é uma das minhas atividades preferidas. Estou pensando em andar nú pela casa. Mas acho que daí não serei eu mesmo. Vou ficar nú diante do espelho e escovar os dentes, quero ver se faço a mesma cara de todos os dias. Estou desconfiado que não sou eu mesmo. Não, não é uma boa idéia andar e ficar nú lá na sala. A sombra na parede vai ficar disforme e aquele negócio balançando vai me amedrontar ainda mais. Eu acho que o melhor é eu me conter e pegar o livro novamente. O banheiro está precisando de uma limpeza geral, está muito fedido, mas não quero encarar o mosaico. Eu poderia até trocar o piso, mas iria desconfigurar a casa. Eu quero é preservá-la mesmo sabendo que o medo de algumas partes se faz presente de vez em quando. Ainda bem que não paguei a conta do telefone. Isso colabora para a manutenção do silêncio. Agora que acabei a minha refeição matutina, tenho que fazer algo e aproveitar o dia junto à minha própria casa. Coloquei a bandeija no chão e me levantei da cama, por pouco não derrubo a xícara e o pires novos no chão. Vou tirar esta calça apertada e essa camisa suada, colocar um roupão e me dirigir ao tapete da sala. Vou cruzar as pernas e fazer meditação, mas antes disso preciso acender as velas do castiçal, quero sentir algo que tenha energia. Fui até o quarto coloquei o roupão e quando cheguei ao tapete e me sentei, senti sono, me deitei e fiquei contemplando o teto. Fechei os olhos e quando eu os abri tive a sensação de que algo se mexia, estremeci, mas era somente o vento que fazia lentamente o lustre se movimentar, então a sombra se mexia na parede, fechei os olhos com as mãos. Não posso imaginar esse lustre caindo sobre mim, seria um estrago e tanto e aí eu ficaria conhecido como o homem morto por um lustre na casa da rua cinco. Com certeza uma tragédia que iria entrar para os anais da cidade e da rua. Me peguei pensando em um senhor que outro dia me abordou na praça da independência e me pediu um trocado, ele carregava um galho de arruda no ouvido e estava parado encostado a uma bicicleta. Não sei porque aquela figura me veio à cabeça. Acho que ainda existem coisas que não tem explicação, sendo assim, o melhor mesmo é me deitar em posição ereta sobre o tapete, esticar as mãos para trás e os pés, como se fosse praticar um exercício, assim, acho que posso evitar as minhas elocubrações momentâneas e os pensamento dispersos. Já tenho um motivo a mais para visitar o jardim lá no fundo do quintal. Eu tenho lá no quarto dos fundos um estojo de pintura e uma tela em branco sobre um tripé. Vou até lá pegá-los, mesmo com a luz da claridade presente, assim, faço uma visita ao jardim, mas antes eu acho melhor tomar um banho. Levantei do tapete, amarrei o roupão na cintura e me dirigi ao banheiro. Quando abri a porta do banheiro estranhei o piso de mosaico preto e tive uma sensação estranha ao entrar, percebi que algo estava fora da ordem com aquele cheiro, mas logo desvendei. O último a usar não puxou a descarga, por isso, aquele odor insuportável. Não posso reclamar muito a final de contas eu moro sozinho, logo, fui eu mesmo o autor da peripécia. Usa o banheiro e não dá a descarga. Não adianta esmurrar a parede nem mesmo rasgar o verbo, nem ao menos possuo um animal de estimação para descontar a raiva, mas, tudo bem. Embaixo da água quente, descubro que não havia pego a toalha para se enxugar, como estava tudo muito bom, resolvi continuar curtindo a água. Vou deixar para me preocupar com isso depois que enjoar de curtir esse momento. Percebi que para isso vou ter que molhar quase a casa toda, pois tenho que atravessar a sala para chegar ao quarto. Vou ter o trabalho depois de ter me trocado e ficado todo bonito para a pintura, ter que pegar um pano para enxugar aquilo que deixei todo molhado. Fiquei aborrecido quando sai do banheiro e me deparei com a cristaleira que fica na sala de jantar, ela está com o vidro quebrado. Nunca havia reparado. Isso me chateou muito, tive vontade de chorar compulsivamente, mas, logo me conformei. Depois disso fui correndo ao quarto para pegar a toalha e me enxugar. Nem voltei para o banheiro, me enxuguei lá mesmo e me troquei. Estava ansioso para ver o meu jardim, as plantas que eu todos os dias rego com prazer, mas que havia dois dias eu não visitava. Fui no quarto da dispensa, peguei o pano e dei a enxugar os meus passos molhados pela casa. Que estupidez! Abri a porta dos fundos da cozinha que dá acesso ao jardim. A vida está presente. Dou um sorriso para as plantas, pego um copo d’água e rego-as com prazer. Pego o tripé com a tela e as tintas. Ainda não tenho idéia do que vou pintar, mas, seja lá o que for é melhor do que ficar perambulando pela casa. Talvez eu faça alguma abstração, assim não terei compromisso com nenhuma paisagem. Faço alguns rabiscos utilizando cores fortes e se duvidar me encorajo de ir à praça vende-los como obra de arte. É lógico que não teria coragem para tanto. Talvez ouvisse de algum transeunte que eu sou um artista embusteiro, não teria coragem de tomar tal decisão, mas vale mesmo é para passar o tempo. Agora estou todo arrumado para poder pintar, falta mesmo apenas a boina e o macacão para evitar respingos de tinta sobre a roupa limpa. Estou meio sem jeito de pegar no pincel.Eu acho que vou desenhar uma mulher nua. Faz tempo que eu não sei o que é sexo de verdade, apenas ando utilizando as minhas mãos para soltar o que tenho preso dentro de mim. Por morar sozinho , as vezes penso em fazer uma orgia aqui em casa, mas fico pensando na vizinhança. Eu acho que eles vão me chamar de putanheiro e sem-vergonha. Também só pode ser assim, imaginou as meninas gritando ai e ui sem parar, vai que algum canalha queira comer a menina lá fora perto do jardim, será um escândalo total no dia seguinte. Não, essa idéia está descartada. Eu acho que eles podem quebrar alguma coisa da casa ou mexer em meu jardim, está hipótese está descartada. E também não quero ver porra em meu banheiro e muito menos em minha banheira. Desenhar uma paisagem é muito trivial, senso comum. Como seria reinventar o sol ou pintar uma casa diferente? Eu não levo o menor jeito para a pintura. Não sei nem fazer os traços básicos. Eu podia imitar aquilo que tenho dentro de casa dando cores diferentes. As paredes poderiam ser vermelhas e as sombras projetadas em preto, as portas amarelas, as maçanetas em dourado. Só ficaria em dúvida em relação ao mosaico do banheiro e da cozinha. Talvez eu os faça lilás. Quer saber, não vou fazer é nada. Vou me espreguiçar novamente sobre o tapete e ficar contemplando o teto. Quero me perder na perspectiva infinita do céu da minha casa. Estou eu aqui esparramado sobre o tapete de braços abertos olhando o teto e espiando a solidão. Ouço um barulho estranho no teto. Parece que algo está se movendo. Talvez seja apenas a minha imaginação andando na escuridão do forro. Solto um grito na casa. Isso fez um eco tremendo, mas me fez sentir vivo. Existe vida na casa da rua cinco. Eu sou a vida. Que solidão, que nada. Eu vou pegar o banco da cozinha, vou levá-lo ao quarto, vou abrir a janela e ficar contemplando o movimento da rua cinco. Já sei, vou pegar um bloco de notas e passarei a anotar todos os acontecimentos. Vou assistir a tudo da janela da casa da rua cinco. As árvores enormes que tomam conta da rua me fascinam. Abri a janela do quarto e uma réstia de sol se fixou em minha cama. É a única parte do dia que o sol chega à casa, depois a sombra se faz presente devido à enorme árvore que toma conta da calçada e um ventinho gelado às vezes passa com volúpia mesmo nos dias mais quentes. Isso me agrada muito. Fiquei de joelhos sobre o banco, olhando o movimento. Aliás, faz tempo que não vejo os meus vizinhos. A apenas alguns minutos na janela e o primeiro personagem já consegue marcar presença. Um homem de meia idade, usando cavanhaque e careca, usando uma roupa encardida e rasgada, empurra um carrinho de mão com muito papelão dentro. De-repente, ele para embaixo da árvore, fuça no carrinho, tira uma marmita e um garfo, senta-se com toda pompa e ali mesmo faz a sua refeição. Olha com altivez a passagem dos carros. Uma senhora vem passando em sua direção. Não consigo ouvir o diálogo, mas vejo a senhora olhar para o pulso onde está o relógio. Talvez o homem esteja com pressa de passar a sua carga adiante e colocar alguns trocados no bolso. De certo para comprar leite, pão e com a sobra alguma carne de segunda ou frango. Mania da gente pensar que as pessoas com menos renda só pensam em comer. A gente se esquece que elas tem as mesmas necessidades que nós. Mas não estou a fim de fazer conjecturas sociais. Eu só estou preocupado com os transeuntes de forma geral e com as suas peripécias. Ainda bem que a janela de casa fica um pouco alto da calçada. Tenho a certeza que poucas pessoas que passam na rua conseguem me enxergar e daí não preciso me preocupar com comentários jocosos que posso receber. Deixo apenas a cabeça à espreita. Quando vou fazer alguma anotação, a faço de cabeça baixa para não ser notado. Um homem acaba de bater o carro na esquina. Foi fazer a curva e bateu no carro que estava estacionado ao lado. Tenho a certeza que foi puro ato de barbeiragem. O homem desceu do carro, olhou atentamente o estrago que havia feito. Logo veio o que parece ser o dono do outro carro gesticulando e bastante nervoso. Me parece que coisas boas não estava dizendo. Logo chegaram os curiosos e a minha visão perfeita foi extinta. Apenas com a chegada da polícia, abriu-se uma roda em torno dos carros. Os policiais de óculos escuros e prancheta em mãos fazem anotações. É lógico que não preciso me preocupar, mesmo sendo testemunha ocular do fato ocorrido, não posso me expor. Eu poderia chegar ao policial e contar o fato realmente como ele aconteceu. Mas, isso não compete a mim, quero ter o menor contato possível com as pessoas. Com certeza o policial quererá saber o meu nome, endereço, telefone e tudo o que se possa imaginar. Daí ficará difícil de eu me livrar desta. E também não quero saber de nenhum homem de seguro aqui em minha casa ainda mais se for para me interrogar. Deus me livre dessa, por favor. Estou ficando cansado de fazer anotações, a posição em que estou já me incomoda. Preciso esticar as pernas. Vou até à cozinha tomar um copo d’água. Estou com tênis, o assoalho assovia a cada passo e parece estar rangendo cada vez mais. Embora eu me irrite às vezes com ele, não tenho coragem de mudá-lo. Ele será eterno na casa. É claro que é enquanto eu me encantar com ela e permanecer por aqui. A sala já não me parece mais estranha. Talvez tenha sido a claridade proporcionada pelo sol. A minha sombra nesse momento já não mais se espicha pela parede. Caminho com segurança pela casa. Os retratos na parede parecem se movimentar a cada instante. Tenho a sensação de que os olhos me perseguem a todo momento. Vou ao armário pego a caneca azul, deixo a água transbordar até derramar. Isso é um prazer de tempos de infância que a todo momento era rompido por uma voz mais possante e castigo eminente. É claro que vou secar em seguida se não poderia cair aqui mesmo. Isso me dá um pouco de preguiça, mas, se eu não fizer isso agora, posteriormente poderei me aborrecer ou até mesmo ficar nervoso. Voltei à janela para continuar a missão. O relógio ainda apontava dez e meia da manhã. Pus a cabeça para fora da janela e para a minha surpresa um casal de jovens se beija na esquina. Confesso que realmente fiquei com vontade e aquilo me excitou levemente. É melhor eu nem prestar muita atenção. Não sou eu mesmo que estou ali, se olhar muito com certeza vou passar vontade. Como dizem aqui no interior "ver com o olho e lamber com a testa". Ainda não estou disposto a fazer justiça com as próprias mãos. Pelo menos agora eu não tenho a intenção. Eu quero realmente é fazer algo de útil neste dia, nem que seja apenas gastar um caderno para fazer anotações sobre peripécias alheias na escura rua cinco. Uma formiga sobe pela cadeira. Eu acho que não vou derrubá-la não. Não se deve maltratar a fauna da casa. Se fosse um bicho como a aranha ou a barata com certeza mereceria uma atenção especial, mas como é apenas uma formiga é melhor eu deixá-la seguir seu caminho. Ela não é capaz de alterar o meu dia. Aqui em casa é assim, cada um por si. Tem um homem no outro lado da calçada que está falando ao telefone. Ele está com a mão direita cobrindo a boca. Não sei do que se trata, mas, com certeza deve ser com a amante. Se estivesse falando com a própria mulher, com certeza não iria ter todo esse cuidado. No mínimo estaria alterado, falando alto. Não sou casado para falar desse assunto, mas, pelo que percebo mulher só dá má notícia ou liga para pedir favor ou dinheiro. O meio dia já está chegando. Eu acho melhor ir pensando no almoço. Hoje, quero sair do trivial, arroz, feijão, bife e batata frita não pode ser o meu prato principal. Hoje, quero ter o prazer de saborear a siesta e se possível nem ligar para o tempo da tarde. O casal até que enfim se separou. Agora posso olhar à vontade para todos os lados sem ficar com vontade de fazer estripulias sexuais. O homem que falava ao telefone calmamente, agora passou a andar a passos largos pela calçada. A formiga já sumiu, deve ter encontrado o seu caminho subterrâneo. Estou com a idéia de comer um espaguete ao molho bolognesa. Não estou a fim de ter muito trabalho. Acho que é a comida mais fácil de fazer e a que não faz muita sujeira. Realmente não posso deixar a cozinha suja. É falta de higiene. Tento manter tudo na casa em perfeita ordem. É realmente muito impossível, talvez por eu ser muito desorganizado. Outro dia me lembrei de Napoleão. Ele chegou de manhã no escritório e pediu para lhe servirem um cafezinho. Eu estava de costas e não vi. Mas pelo que sei na hora em que foi por o café na boca, bateu sem querer no pires e o café caiu em sua camisa branca. Xingou todo mundo do escritório. O azar dele foi que a xícara caiu no chão e se partiu em dois, assim como o pires. Todo mundo deu uma tremenda risada. Que sujeito mais desastrado. Ainda hoje quando me lembro do episódio me pego rindo sozinho. Uma mulher loira de cabelos compridos e bunda grande para na esquina. Ela está vestida com uma calça jeans agarrada, uma bolsa de coro sobre o ombro e uma blusa branca. Não consigo ver a cor dos seus lábios, apenas percebo que as unhas estão pintadas. Não consigo distinguir a cor, mas acho que deve ser uma mulher bonita. Realmente faz tempo que não sei o que é isso, mas, não me abalo por não ter. Tenho a certeza que eu não fiz voto de castidade ou nenhuma dessas tolices que as religiões ensinam. Tenho uma imagem de Santo Expedito que fica num pequeno altar que montei junto à parede do fundo da cozinha. Não sou religioso efervescente. Sou daqueles que gosta de fazer um pecadinho de vez em quando sem ter muito peso na consciência. Na verdade eu nem sei porque eu tenho aquele pequeno altar lá na cozinha. Eu acho que é porque uma vez fui a uma dessas igrejas por aí e vi uma senhora rezando para Santo Expedito de forma fervorosa. Eu acho que a fé que ela depositava no santo era tão grande que acabei me deixando influenciar e aí eu acabei fazendo aquela presepada. Isso não tem problema pois a qualquer momento posso me enjoar e tirar aquilo de lá. Até porque também me dá muito trabalho. Sempre que chego em casa tenho que trocar a vela. É um compromisso com o santo, mas já percebi que mesmo eu esquecendo a rotina não se altera. E a vida não muda. Não creio na capacidade do santo alterar algo na minha vida. Talvez porque também seja homem de pouca fé. Um rapaz chega e da um beijo no rosto da moça. A moça lhe dá um sorriso. Não se trata de um sorriso com malícia, pois isso eu reconheceria de longe. Um homem que passava do outro lado da calçada olhou em direção à janela. Eu logo me escondi. Mesmo eu não o conhecendo não quero que me veja. Não quero que ele carregue em sua mente a minha imagem que com certeza vai estar com cara de espanto. Não será uma boa isso acontecer. Se ao menos eu estivesse sorrindo, poderia deixar uma boa impressão. Fico pensando se eu ficasse fazendo sinal de positivo para todo mundo ou mesmo abrindo um sorriso falso. Alguns diriam: Aquela ali é a casa do sujeito simpático, como é mesmo o nome dele? A casa dele é tão bonita! Outros diriam: É ali que mora aquele palhaço. Aquele cara que fica fazendo sinal de positivo para todo mundo e dando risada feito uma hiena. Faço anotações sem parar. Até uma lagarta que subia com grande dificuldade o tronco da árvore mereceu um bocadinho da minha escrita. Coço a cabeça com veemência pensando no que fazer para comer no almoço. Vou fazer ovo frito e comer com pão. Vou me entupir de colesterol. Nunca fui de pensar muito em problemas de saúde. Como sal e açúcar à vontade. A gente todos os dias morre do coração. É só passar nas bancas de jornais e ver as notícias. É impressionante o cultivo do mal. Até evito em trazer jornal para dentro de casa. Tenho a certeza de que atrai coisa ruim. Outro dia mesmo para evitar essas crises eu comprei lá na venda uma fileira de alho e dois sacos de sal de grosso. Coloquei tudo isso dentro de uma vasilha e coloquei em cima da mureta da cozinha para todo mundo ver. Como em casa não recebo visitas a cortesia serve para os espíritos que talvez rondem por aqui. Para não dar sopa ao azar tudo o que é ruim evito trazer para cá. Para me garantir contra maldade alheia eu até investi em uma pimenteira. E olha que bem devagar ela está secando. Isso significa que mesmo que eu não receba ninguém em casa, alguns espíritos provavelmente muito invejosos, andam circulando por aqui. É claro que também tenho que contar aqueles que passam na calçada de casa. Eu não posso evita-los se não eu mesmo colocaria um desvio na calçada para que as pessoas não a vissem ou passassem bem longe. Talvez assim eu evitasse o secamento da pimenteira, pois tenho certeza que todos os dias eu a rego com certo carinho, mesmo sabendo que ela não é nada delicada. Ponho o ovo na frigideira e pego o pão que está em um saco de papel dentro do armário. Tomo cuidado para não derrubar o farelo no chão. A minha dor de cabeça passou, ainda bem. É melhor eu tampar a frigideira se não vai espirrar gordura pelo fogão ou mesmo em mim, o que seria pior pois pode sujar a minha camisa que é recém adquirida. Por falar em roupa, tenho algumas para passar que estão lá na lavanderia. Talvez eu encontre algum tempo a tarde para fazer isso. Agora, mesmo não sendo ainda nem meio dia quero me preocupar apenas em comer o ovo com pão. Sento na banqueta, pego o prato e puxo a frigideira para perto, despejo o ovo no prato e pego o pão que já não é tão fresco. Cruzo as pernas, molho o pão no ovo e como com altivez. Olho de cabeça erguida para as paredes da cozinha, com soberba. Elas me permitem isso. Garanto que nem um príncipe se comporta como tal. Estou bastante perfumado e bem vestido para esse momento. Enquanto mastigo o pão com ovo, observo a caderneta de anotações com a caneta em cima. Acho que já escrevi bastante por hoje. Não é por nada mas acho que faz tempo que não vejo a minha caixa com fotos que fica em cima do guarda-roupa. Talvez assim, consiga me relembrar de alguns momentos felizes, não que eu não seja hoje. Apenas queria sentir o sabor de ter visto o tempo passar. Não. Acho que não é o momento apropriado para isso. Não gosto de fazer reminiscências. Não gosto de melancolia. O tempo passa para todos mesmo. Não existe isenção nesse sentido. É uma das coisas que me dá orgulho, o tempo. Só ele mesmo pode ser tão democrático e impiedoso. Todos os sentem na pele a sua ação. O meu ovo com pão estava realmente uma delícia. Descruzo as pernas e estufo a barriga. Sinto que ela cresceu um pouco. Levanto da banqueta me espreguiçando, bocejo durante uns dois segundos e me deito no tapete da sala. Estou com preguiça, mas preciso tomar alguma coisa. Preciso fazer descer o pão com ovo. Um refrigerante agora cairia bem. Ainda não estou viciado em café, mas seria uma boa opção para quem não quer dormir. Dizem por aí que o café é estimulante. Pelo menos é a crendice popular. Se eu tomar café com certeza não vou conseguir dormir na parte da tarde. Se bem que hoje eu considero o dia para apreciar a minha casa. Um dia de semana é claro. Não sei porque coloquei na cabeça que a minha própria casa é diferente no final de semana. A quietude é a mesma. Se bem que nos finais de semana me dou ao luxo de ligar um rádio ou a tevê ou até mesmo ficar navegando horas e horas na internet, mesmo sabendo que a conta de telefone vem alta no fim do mês. O melhor mesmo a fazer agora é voltar para a janela e continuar apreciando os fatos ocorridos na rua cinco. Infelizmente não consegui me desviar do olhar soturno da morena que trafegava do lado oposto da rua. Na hora em que ela virou a cabeça, eu tentei me esconder, mas foi em vão. Ela me pegou espiando pela janela. Fiquei com vergonha. E mesmo ela tendo um olhar triste me fez sinal de positivo. Aquilo me desconcertou naquele momento. Pensei em parar com a atividade de espião. Fiquei muito triste. Tive a sensação de que perdi o meu anonimato. Talvez ela contasse isso para alguém e aí outras pessoas que fossem passar por aqui, já passariam ressabiadas. Será que tem alguém ali me olhando? Perguntariam. Isso talvez dificultasse as minhas anotações. Nada me impediria, mas criaria uma barreira para mim que não iria conseguir mais escrever. Se bem que não acho que terei uma nova oportunidade dessas. A menos que eu estivesse a fim de namorar a minha própria casa em um dia de semana. Mas daí, seria uma outra história. Com certeza os personagens seriam outros. Estou deitado na cama. Mas acho que devo levantar e arrumá-la. Não gosto de dormir em cama desarrumada. O meu colchão já está muito velho e fazendo uma leve curva ao meio. Isso tem prejudicado a minha coluna cervical. Está na hora de trocá-lo. Fico ressabiado em trazer coisas novas para dentro de casa. As vezes acho que elas costumam influenciar negativamente as outras peças. A minha cama sim é muito antiga. Do tempo que ainda existia pau brasil. Mas, ainda não me acostumei com a idéia de trocá-la. Não quero desconfigurar o quarto. É cada coisa no seu lugar e pronto. O sol foi se embora da casa. Ela se tornou um pouco fria. O ár gélido se fez presente. É melhor eu colocar um agasalho. Não quero saber de resfriado esse ano. Não quero fazer chá para eu mesmo. E também quando estou passando mal, não consigo cozinhar. O que me dá gastos extras, porque ou tenho que contratar alguém para trabalhar pra mim ou tenho que pedir comida. Não gosto de ser observado quando estou na condição de doente. As pessoas ficam com uma má impressão da gente. Ficam só observando o remédio que a gente toma e a nossa fisionomia não ajuda muito. Em primeiro lugar, porque invariavelmente as doenças possuem a capacidade de nos deixar de mau humor, por outro lado, também as vestimentas que a gente usa não são nada convidativas, meias rasgadas, calças de pijama antigas e já furadas, cobertores cheirando à mofo. Também tem o lado estético, né. É cara amassada, cabelo despenteado, o emagrecimento constante. Tudo isso são coisas para deixar o ambiente ainda mais carregado e sem vida. E também ninguém aguenta o mau humor perene na casa. Então. a melhor opção para quando eu ficar doente é pedir que a comida seja entregue em casa, pelo menos vou poder me arrumar somente para o instante da entrega. Posso até me dar o luxo de colocar terno e gravata para o ato. Para o entregador serei um eterno bacana se eu der a ele uma gorjeta promissora. Se eu não der, ele pode simplesmente ficar com aquela imagem de alguém realmente sério. Posso até fazer uma pose, lhe dizer bom dia, boa tarde ou boa noite, apertar-lhe a mão e lhe dizer muito obrigado pela entrega. Garanto que ele já ficará feliz, mesmo não recebendo uns trocadinhos. Quando estou doente, não consigo sentir o cheiro do alho. Me dá ansia de vômito. O café me embrulha o estômago, aliás tenho ojeriza de café nessa situação. Não sei porque mais determinadas coisas que adoro, passo a detestar sem maiores explicações. Apenas sinto. Só isso. Como não quero barulho na casa e também não possuo nada para fazer, acho melhor ligar a televisão e não aumentar o volume. Vou ver apenas a imagem do apresentador ou do filme sem ouvir a voz. Aliás, faz tempo que não assisto à televisão. Tenho nojo dos seus programas, mas dá para se distrair. Vou me contentar em apenas fazer a leitura labial do infeliz que está do outro lado. É claro que para assistir à televisão eu tenho que ficar em uma posição confortável. Como estou em um tapete, não possuo uma boa perspectiva para assistir, vou ter que pegar uma almofada para ficar sobressalente. Se bem que depois eu posso sentir uma leve dor na coluna ou no pescoço. Mas, nada que uma boa massagem não possa curar. Nunca me preocupei muito com televisão e para não alterar a estética da casa resolvi manter a antiga que havia aqui desde mil novecentos e oitenta. Mandei fazer uns reparos nela e ficou com uma imagem muito boa. É claro que ela possui ainda aquele filtro azul na frente. Os antigos dizem que é para não estragar muito a nossa vista. Mas, a tela já existia desde que eu me conheço como gente, então, resolvi deixar. Eu vejo a tevê e todos os personagens me parecem azul. Isso sim eu posso considerar a uniformização do mundo, aliás, agora sim posso dizer ao mundo que o próprio mundo é azul. Então vou dizer ao mundo: vivemos em mundo azul com algumas gotas vermelhas. Não, assim, não pode ser, vão achar que eu estou querendo tirar sarro de todos. Mas, não é nada disso. São apenas efeitos de elocubrações momentâneas e esporádicas de um desocupado no dia de hoje. Dizem os mais velhos que a falta do que fazer transforma o nosso cérebro em oficina do diabo. Não sou dos que crê nesse tipo de pensamento. Creio sim que são momentos de pura reflexão e também de observação. Fico prestando atenção em coisas que realmente eu não prestava antes, por isso, tudo torna-se importante e vistoso.

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