Friday 22 June 2007

Sobre o Poder Executivo

“Dos três poderes acima mencionados, o judiciário é quase nada”
Montesquieu

A luta constante para constituir a legitimidade do poder político através dos tempos passou pelo crivo de dois pontos de discussão que por si só são antíteses por natureza.
De um lado, está o poder emanado de Deus, cujo qual os monarcas da Idade Média revestiam com astúcia e sagacidade para impetrar as diretrizes políticas e os desmandos que lhe eram inerentes.
De outro lado, está o poder emanado do povo, aquele cujo qual os súditos ou plebeus são ouvidos, no sentido de proporcionar aquilo que é denominado como poder legítimo, abrindo espaço para o fenômeno do republicanismo.
A discussão entre teocentrismo e republicanismo está centralizada justamente no que diz respeito às limitações da questão do poder.
Durante a Idade Média, os conceitos de autoridade e obrigação política estavam atrelados à proposição luterana de que a natureza da autoridade inexistia sem uma porção de dotes religiosos. “O poder do rei deve estender-se ao julgamento de todas as causas, eclesiásticas e temporais, e que esse próprio poder deve ser absoluto, pois “não existe ninguém a quem o rei deva prestar contas”[1].
Quando se trata de discutir o poder dos súditos no interior do pensamento teocentrista recorre-se à doutrina passiva de São Paulo que é objetiva em suas entrelinhas, “todo homem deve submeter-se às autoridades constituídas, pois todo poder é de Deus”[2].
O pensamento teocentrista começou a modificar-se ainda no limiar do século XII com o movimento conciliarista. O movimento conciliarista tratava-se de uma série de argumentações que tinha como ponto fulcral de discussão a proteção da Igreja contra as intenções de heresia ou do mau governo do papa.
A principal idéia do movimento conciliarista era de ver a Igreja somente como uma forma de Monarquia Constitucional, aonde a Igreja passava a ser apenas uma espécie. Nesse sentido, a localização do poder político sofria sua mais intensa transformação, passando das mãos da proteção divina para as formas republicanas, ou seja, evoluindo em direção ao constitucionalismo.
O poder da Igreja sofria um processo de deslocamento e se movimentou do sentido de poder pleno para apenas e tão somente no sentido do poder espiritual.
De acordo com um teórico chamado Gerson da Igreja da Idade Média e expoente das teorias republicanas, a localização da autoridade numa sociedade perfeita pode ser encontrada através de três afirmações. “A primeira e mais importante é que nenhum governante pode ser maior, em poder do que a comunidade que governa...o segundo, que o status de todo governante em relação a essa comunidade deve, em conseqüência, ser o de um mister ou rector, e não de um soberano absoluto... e conclui que todo governante digno do nome deve sempre agir “para o bem da república “de acordo com a lei”. Ele não está “acima” da comunidade, mas faz parte dela; está comprometido com suas leis e limitado por uma obrigação absoluta de “visar o bem comum em seu governo” [3].
Baseado na concepção republicana que já se emergia durante a Idade Média, Charles-Louis de Secondat, o Montesquieu escreve no século XVIII, a obra que vai revolucionar e dar início ao que posteriormente Max Weber denominará de Estado Moderno. Trata-se de uma proposição de Organizações Políticas e sobretudo do processo de limitação das questões do poder, proporcionando assim, os capítulos finais da história do absolutismo desmoderado da idade medieval.
Sobre a necessidade da limitação dos poderes, Montesquieu é enfático, “o homem como ser físico, é tal como os outros corpos, governado por leis invariáveis. Como ser inteligente, viola incessantemente as leis que Deus estabeleceu e modifica as que ele próprio estabeleceu”[4]. Nesse sentido, Montesquieu enxerga nos homens, seres limitados e que mesmo provedor de inteligência , é capaz de agir com ignorância e errar além de estar sujeito às múltiplas paixões, fazendo com que os mesmos esqueçam da vida em sociedade, apelando para as leis da natureza, o que justifica segundo ele o estabelecimento das leis entre os homens.
Por conseguinte, na obra “O Espírito das Leis” , Montesquieu trata de três diferentes formas de governo: o Republicanismo, o Monárquico e o Despótico. O que está relacionado estritamente com o desenvolvimento deste trabalho e trata-se de objeto de ação é o Governo Republicano. O Governo Republicano para Montesquieu é o “governo em que o povo, como um todo, ou somente uma parcela do povo, possui o poder soberano” [5].
No Capítulo II do Livro Segundo “Do Governo Republicano e das Leis Relativas à Democracia “ Montesquieu afirma, “quando, numa república, o povo como um todo possui o poder soberano, trata-se de uma Democracia. Quando o poder soberano está nas mãos de uma parte do povo, trata-se de uma aristocracia” [6]. Nesse sistema é fundamental a existência do sufrágio para a escolha dos governantes, uma vez que de acordo com Montesquieu o povo não é capaz de governar com sabedoria uma vez que lhe falta a condição necessária para lhe dar com os próprios interesses. “O povo é admirável para escolher aqueles a quem deve confiar parte de sua autoridade...saberá o povo dirigir um negócio, conhecer os lugares, as ocasiões, os momentos e aproveita-los? Não: não saberá.” [7].
No entanto, assim como os monarcas governavam baseados na licença de um Deus onipresente e onipotente, no governo democrático a licença, ou seja, a legitimidade política encontrava-se nos braços do povo e só podia ser mantida, de acordo com Montesquieu, através da força da virtude. “A república é um despojo mas sua força não é mais do que o poder de alguns cidadãos e a licença de todos” [8].
Apesar de Montesquieu ter estudado e apresentado uma solução legal para as questões do poder, através dos órgãos do Poder Executivo, Poder Legislativo e Poder Judiciário e ter designado a cada um a sua função, ao Poder Executivo (executar), ao Poder Legislativo (Legislar) e ao Poder Judiciário (Cumprir o ato normativo) e influenciado os quatro cantos do mundo, através da sua teoria, na prática tal divisão não apresenta contornos simples de delineamento. Em primeiro lugar, há de se levar em consideração as diferenças de época e as idiossincrasias populacionais. Em segundo lugar, as diferenças de constituição de uma determinada população, seus hábitos e modos distintos e em terceiro lugar, o ponto principal entre a teoria e a prática proposta por Montesquieu, ou seja, as dimensões quase inimagináveis de alocação de poder.
As formas com que se constituem as relações de poder na sociedade contemporânea contribuem para a não determinação exclusiva de papéis a serem desempenhados por um único Poder, o principal argumento que fortalece tal proposição está localizada nas formas de poder que são exógenas a um determinado país, ou seja, as relações de poder não se encontram mais no interior de um determinado local, mas lhe é imposto pelas condições internacionais, fazendo com que as formas de poder local sofram transformações não somente em seus princípios, mas principalmente em suas atitudes.
Em um mundo que prevalece a sociedade de massas e que sofre a interferência de mecanismos externos a todo instante “não há como manter a distinção entre legislação (função legislativa) e administração (função executiva). O governo compreende ações legislativas e administrativas. A legislação e a execução das leis “não há funções separadas ou separáveis, mas sim diferentes técnicas do political leadership” [9].
Nesse sentido, o Poder Executivo lidera os dois poderes assumindo assim uma certa relação de despotismo. Não aquela baseada em um poder teocentrista de caráter medievalista, mas de uma forma moderna, sem o uso da força na acepção da palavra, mas com a anuência da legitimidade proporcionada pelo direito. O Poder Executivo na atualidade utiliza-se muito mais das suas prerrogativas administrativas do que propriamente de uma condição legal. “O Poder Executivo maneja dinheiro, executa serviços, constrói obras públicas, controla o câmbio e a emissão de moedas, negocia títulos públicos para arrecadar fundos ou para controlar a economia, fiscaliza as instituições bancárias financeiras, de seguros , os fundos de pensão, oferece créditos subsidiados a esta ou àquela atividade econômica...o Estado age mais por meio da administração do que propriamente por meio da lei, embora esta seja mais utilizada do que antes, tendo por isto sofrido um processo de banalização” [10].
Em uma sociedade com características globais e com pensamentos racionalistas sobre as questões da vida, o posicionamento daqueles que são incumbidos da elaboração das leis torna-se a cada segundo mais ingrato, tendo em vista a tecnicização imposta pelo desenvolvimento econômico que assolou o mundo nos últimos anos. A tecnicização da sociedade dificulta a elaboração de leis por parte do Poder Legislativo, porque exige um preparo maior deste com relação a aquisição de conhecimentos, ou seja, exige um preparo técnico aprimorado ou uma especialização. Em contrapartida, a escolha dos congressistas não está baseada em critérios de conhecimento específico ou técnico mas sobretudo através do sufrágio. A supremacia do Poder Executivo frente ao Poder Legislativo também se estabelece por esse último existir em grande número, enquanto o Poder Executivo é exercido por um número bem inferior de pessoas.
Um dos pontos a ser considerado sobre a supremacia do Poder Executivo sobre o Poder Legislativo, está relacionado com o sistema político vigente. A política de alianças que predomina na política contemporânea estabelece como ponto principal de poder de barganha a composição política que irá gerar a maioria governista na Câmara dos Deputados, o que serve para o Poder Executivo usufruir do fenômeno da governabilidade. Dessa forma, o Poder Legislativo se curva diante dos interesses do Poder Executivo, no sentido de aprovar todos os projetos enviados pelo mesmo. A missão do Poder Legislativo cabe a apenas ao envio de emendas aos Projetos de Lei impetrados pelo Poder Executivo. Os Projetos de Lei elaborados pelos membros da Câmara dos Deputados somente sofrem processo de discussão e votação se forem de interesse do Poder Executivo ou se não estiver relacionada com questões políticas de “supra importância”.
A principal função do Poder Legislativo no quadro político contemporâneo é de vigiar e punir atos do Poder Executivo, mas que também é colocada em posição duvidosa uma vez que o mesmo possui a maioria dos Congressistas. “O presidente é eleito para cumprir um mandato. Porém, apenas raramente o governo deixa de possuir o apoio da maioria parlamentar. Então, se possui a maioria, logo o controle parlamentar sobre os seus atos é praticamente nenhum...se não possui referida maioria, poderá obtê-la , fazendo uso dos conhecidos mecanismos de pressão e sedução” [11].
No interior do sistema democrático em voga não seria competência do Poder Executivo propor Projetos de Lei ao Poder Legislativo. No entanto, a participação do Poder Executivo no interior da atividade legislativa se dá de duas formas de acordo com Clève:
- “Intervir em um das fases do procedimento de elaboração da lei”;
- “Exercer ele mesmo, a função de elaborar o ato normativo”[12];
Apesar do fortalecimento da democracia em nível mundial, o Poder Executivo na sua atual forma, ainda possui traços marcantes do despotismo medieval carregando em suas costas o poder da decisão final sobre todos os temas debatidos. Trata-se do poder de veto. “E o veto poderoso instrumento de controle do Poder Executivo sobre a ação legiferante do Congresso Nacional”[13]. Dessa forma, se o Projeto de Lei for do interesse do Poder Executivo, o mesmo sanciona e se não for, é vetado, possuindo um prazo para ser revisto e modificado conforme as suas próprias diretrizes.
Uma das questões intrínsecas ao fenômeno da globalização e que interfere de forma violenta nas relações de poder, está relacionada com o conflito de interesses entre aqueles que detém o poder econômico e o próprio Estado, fonte inesgotável de receitas. A formulação de determinadas leis em caráter próprio, ou em benefício de um determinado grupo também colabora para que o Poder Legislativo se curve perante aos interesses do Poder Executivo. “ São as grandes corporações, os sindicatos, os partidos políticos, as associações culturais e de classe, a igreja, as grandes empresas, os conglomerados bancários: grupos dotados de interesses próprios, quase nunca coincidentes com aqueles do Estado, que muitas vezes disputam poder com este, e não poucas vezes mais poderosos que ele”[14]. O problema relacionado entre os interesses dos membros das Casas Legislativas e as questões do poder privado está de forma intrínseca ligado às regras e determinações das campanhas eleitorais. A permissão de financiamento de campanhas políticas por parte do setor privado, coloca os próprios legisladores como refém de políticas que inúmeras vezes não estão em harmonia com os interesses da coletividade. Por conseguinte, compete ao Poder Executivo, personalizado na figura do Presidente da República pensar e agir em detrimento da coletividade, gerando uma relação personalista e com características populistas.
As inúmeras tarefas exercidas pelo Poder Executivo e a sua autonomia de geração de receitas, deslocam o alvo de grupos de interesses. Com a perda da exclusividade do processo legislativo, os grupos de interesses se deslocam para o Poder Executivo, comprometendo a unanimidade que o processo democrático adquiriu no sentido mundial nos últimos anos.
Se o Poder Executivo possui inúmeras atribuições e com características totalitárias se impõe ao Poder Legislativo e ao Poder Judiciário, o mesmo não pode estar relacionado com a queda de braço entre os interesses do Poder Executivo e os interesses privados. Inúmeras são as desconfianças de que o Poder Executivo se ajoelha diante dos interesses do setor privado e como exposto anteriormente colocando em posição de xeque mate a eficiência da democracia. O pensador italiano Norberto Bobbio em seu livro o futuro da democracia, é claro em dizer que a democracia não cumpriu suas promessas e que necessariamente precisamos reinventa-la.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] Skinner, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. Pág. 393.
[2] Skinner, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. Op. Cit. 393.
[3] Skinner, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. Op. Cit. Pág. 397.
[4] Montesquieu. Do Espírito da Leis. Coleção os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1997. Pág. 39.
[5] Montesquieu. Do Espírito das Leis. Coleção Os Pensadores. Op. Cit. Pág. 45.
[6] Montesquieu. Do Espírito das Leis. Coleção Os Pensadores. Op. Cit. Pág. 45.
[7] Montesquieu. Do Espírito das Leis. Coleção Os Pensadores. Op. Cit. Pág. 47.
[8] Montesquieu. Do Espírito das Leis. Coleção Os Pensadores. Op. Cit. Pág. 61.
[9] Clève, Clemerson Merlin. A função legislative do Poder Executivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. Pág. 34.
[10] Clève, Clemerson Merlin. Atividade legislative do Poder Executivo. Op. Cit. 52.
[11] Clève, Clemerson Merlin. Atividade Legislative do Poder Executivo. Op. Cit. Pág.148.
[12] Clève, Clemerson Merlin. Atividade Legislativa do Poder Executivo. Op. Cit. Pág. 100.
[13] Clève, Clemerson Merlin. Atividade Legislativa do Poder Executivo. Op. Cit. Pág. 118.
[14] Clève, Clemerson Merlin. Atividade legislativa do Poder Executivo. Op. Cit. Pág. 44

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